Sombras
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Categoria hospedeira: 2023
ciclo "Sob a Influência"
11 MAR (SÁBADO) | IPDJ | 18H
SOMBRAS
John Cassavetes, EUA, 1959| 87’, M/12
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
John Cassavetes, realizador, argumentista, actor, dramaturgo e encenador, é o “pai” do cinema independente e influenciou (e continua a influenciar) um sem número de realizadores no mundo inteiro, entre os quais Peter Bogdanovich, Martin Scorsese, Jean Eustache, Maurice Pialat, Jacques Rivette ou Ryusuke Hamaguchi. Alguns dos seus filmes foram antes peças de teatro (Rostos, Uma Mulher sob Influência, Noite de Estreia) e mesmo Sombras partiu de improvisações a partir de um workshop com actores. Cassavetes era um realizador “que amava os actores” e a forma como trabalhava com eles foi marca decisiva e distintiva da sua obra. Quando vemos os seus filmes vemos o respeito e a forma como defendia com fervor os seus personagens falhados. Por seu lado, Peter Bogdanovich chamou-lhe um revolucionário, e realçou o aspecto político da sua obra, algo que, como escreve Jonathan Rosenbaum, nem sempre foi bem compreendido. LEOPARDO FILMES
CARTA ABERTA A JOHN CASSAVETES, POR JIM JARMUSCH
Há algo de especial que sinto momentos antes de ver os teus filmes – uma expectativa. Não importa se vi o filme anteriormente ou não (acho que já os vi todos umas quantas vezes), ainda tenho esse sentimento. Espero por algo que pareço desesperadamente desejar, uma espécie de elucidação. Como cinéfilo ou como cineasta (para mim já não parece existir uma divisão clara entre os dois) antecipo uma rajada de inspiração. Quero elucidação formal. Preciso que me sejam reveladas as consequências de um jump-cut. Quero saber como a crueza dos ângulos da câmara ou do grão da película figuram na equação emocional. Quero aprender sobre a representação através das interpretações, sobre os ambientes através da luz e dos locais. Estou pronto, completamente preparado para assimilar “a verdade a vinte e quatro frames por segundo.”
Mas a questão é esta: assim que o filme começa e me apresenta o seu mundo, perco-me. A expectativa daquela elucidação particular evapora-se. Deixa-me lá, sozinho no escuro. O mundo dentro da tela é agora habitado por humanos. Também parecem perdidos, sozinhos. Olho-os. Observo cada pormenor dos seus movimentos, das suas expressões, das suas reacções. Oiço atentamente aquilo que dizem, os contornos desgastados do tom de voz de um, a malícia disfarçada no ritmo oral de outro. Já não estou a pensar em representação. Estou desatento ao “diálogo”. Esqueci a câmara.
A elucidação que antecipava é substituída por outra. Esta não convida à análise ou à dissecação, apenas à observação e à intuição. Em vez das revelações sobre, por exemplo, a construção de uma cena, vou ficando elucidado acerca das subtis nuances da natureza humana.
Os teus filmes são sobre o amor, a confiança e a desconfiança, o isolamento, a alegria, a tristeza, o êxtase e a estupidez. São sobre a inquietação, a embriaguez, a resiliência e o desejo, sobre o humor, a teimosia, as falhas de comunicação e o medo. Mas acima de tudo são sobre o amor e levam-nos a um sítio mais profundo do que qualquer estudo da “forma narrativa”. Sim, és um grande cineasta, um dos meus favoritos. Mas aquilo que os teus filmes iluminam de forma mais comovente é que a película é uma coisa e a beleza, a estranheza e a complexidade da experiência humana são outra.
John Cassavetes, tiro-te o chapéu. E seguro-o sobre o meu coração.
LEOPARDO FILMES
SHADOWS
O FILME-JAZZ
O Jazz é o som de "Shadows", a cena musical original. O genérico surge-nos de rompante: corpos que se movem e dançam ao som de música Jazz, pontuada por vozes, gritos como nos discos de Charles Mingus. O filme não coloca apenas em cena os músicos, o realizador faz apelo ao próprio Mingus e a Shafi Hadi, seu saxofonista, num exercício de improvisação perante a câmara. Muito mais tarde, numa entrevista dada na época de "Love Streams", Cassavetes conta a aventura: "Charlie, dirigia a partir do seu baixo. Tinha escrito todas as partituras e afinado todos os instrumentos. Na primeira sessão as coisas não correram muito bem e fui forçado a incentivá-lo: "Vamos, Charlie, o que é que se passa? Você é capaz de improvisar... Charlie respondeu: "Não, não podemos fazer isso. Impossível. Somos artistas. É preciso que esteja escrito. É a bela música do homem".
Charlie Mingus dividiu-se sempre entre a beleza matemática da composição e a liberdade da improvisação. Desde "Shadows" que a semelhança entre o cinema de Cassavetes e o Jazz se tornou uma evidência. Esta música fundada sobre a improvisação, lembra a linguagem do corpo, é como o duplo exacto do trabalho de Cassavetes e da sua equipa - atrás e à frente da câmara. É em "Shadows" que as qualidades estritamente "jazzistas” do estilo de Cassavetes se encontram no estado mais puro: a inscrição do tempo situa-se no centro de cada plano, há uma abertura ao sentimento do instante, há um trabalho sobre a inflexão tanto do som como da imagem, para além da recusa de uma submissão efectiva da escrita, partitura ou argumento enquanto entidades transcendentes. Estabelece-se uma ligação estrutural entre duas práticas diferentes e não apenas uma relação de analogia ou semelhança. É o próprio Cassavetes que se comporta como um músico de Jazz, enquanto filma "Shadows". Da mesma forma, os arranques de Mingus, situam-se entre a composição e a improvisação, é algo que se constrói (embora Mingus pense que é a ordem da composição que é quebrada pela energia da improvisação).
Para descrever este movimento de vai e vem entre o apolíneo e o dionísiaco, podemos resgatar à batuta de Daniel Humair o conceito de "composição instantânea". A expressão, inventada para qualificar o trabalho do músico, adapta-se de modo perfeito ao cinema de John Cassavetes, já que este é como um momento de Jazz, que se inventa, reinventa diante dos nossos olhos. Ao analisar as imagens do filme fiquei espantado pela abundância de notações sonoras e musicais. Vê-las inscritas no branco e negro, muito mais que escutá-las na totalidade do filme, fez-me tomar consciência directa da importância do mundo sonoro na mise-en-scàne de John Cassavetes. As linhas serpenteiam, cruzam-se, misturam-se, tocam o indescritível. A música, as vozes, os risos, os ruídos, funcionam como camadas que se sobrepõem alternadamente. Em "Shadows" o "frasear quase felino" de Shafi Hadi (a expressão é de Laurent Goddet) segue a sua própria linha de improvisação, omo diríamos em linguagem musical, uma nota de baixo. Será um comentador? Um actor? Alguém que produz um efeito de excitação? Um pouco dos três, sem dúvida. De facto, a sua função não é definida formalmente. É uma função móvel, imprevisível. O saxofonista improvisa sobre as imagens: traduz efeitos, impurezas, ritmo. É audacioso, confia nos instintos, como os actores. O que se produz é uma experiência rara no cinema, entender a música como um comentário livre e flutuante da imagem, de forma a tornar o contrabaixo ou o saxofone personagens inteiras, impossíveis de recortar do filme, ao ponto de operar uma destituição instantânea da supremacia da imagem em relação ao som.
Thierry Jousse in John Cassavetes, Cahiers du Cinéma, Collection Auteurs, 1989
"Tinha acabado de alugar um apartamento na rua 48, reuni um grupo de dezanove actores para criarmos um curso de arte dramática; todos pagavam dois dólares por semana (eu incluído). "Shadows" começou numa improvisação sobre a qual o grupo estava a trabalhar. Um dia, durante uma aula, fiquei tão impressionado com uma improvisação que disse imediatamente: "Mas isto dava um filme genial". Era a história de uma negra que se faz passar por branca, mas que acaba por perder o seu namorado branco quando este encontra o seu irmão, que é negro. Nessa noite fui ao programa de rádio de Jean Sherpard, "Night Peoplel', o apresentador referiu-se a "Edge of the Cityl', facto com o qual joguei e quis agradecer. Falei a Jean da peça que tinha improvisado na aula e disse-lhe que daria um filme genial; Jean perguntou-me se eu pensava ser capaz de trabalhar essa matéria-prima. Respondi-lhe: "se as pessoas têm verdadeiramente inveja de ver um filme em que o tema é o homem, devem pagar por isso". Ao fim de uma ou duas semanas, "The Sherpard Show" recolheu dois ou três mil dólares da parte dos ouvintes.
Se tivessemos um argumentista, teríamos seguido um argumento.
"Shadows" foi um acidente criativo... não sabíamos por onde começar e... fomos forçados a improvisar. Se tivessemos um argumentista, teríamos seguido um argumento. Acabei por inventar as personagens do filme, mas sem nunca seguir uma sinopse. Improvisámos sobre uma história que tinha vagamente na cabeça. Era o meu segredo. Cada cena de "Shadows" é de uma extrema simplicidade; são situações com as quais somos confrontados no quotidiano e que se evaporam perante a complexidade de outras. No final de cada cena, surge um outro problema que ultrapassa o anterior em gravidade. É esta sucessão temporal que faz avançar a história.
Uma estrutura narrativa simples que pouco a pouco se constrói.
O objecto do filme é a constatação de que não há nenhum problema que não possa ser substituído ou ultrapassado por outro...
Uma vez encontrada a estrutura restou compôr as personagens e trabalhar os papéis com os actores. Antes de iniciar a rodagem do filme passámos quinze dias a trabalhar as personagens.
Esboço de um papel escrito por Cassavetes:
Benny - É conduzida pela incerteza da sua cor, procurando a integração no mundo dos brancos. Contrariamente ao seu irmão Hugh, ou Janet, não extravaza regularmente as suas emoções. Passou a maior parte da sua vida a decidir-se acerca da sua própria cor. No momento em que decide ser de raça branca verifica que a aceitação se situa no mesmo plano. Para Benny esta situação é muito constrangedora uma vez que a sua decisão implica uma traição para com os membros da sua raça. A sua vida é uma luta vã, para provar algo que se situa ao nível do abstracto.
Descobrir porque não se é livre
Ensaiei várias coisas em imensos filmes, mas nunca cheguei a adaptar-me a esta forma de expressão. Descobri que não era totalmente livre na construção de certas cenas, fosse no cinema ou numa peça de TV em directo. Realizar "Shadows” tornou-se um meio de descobrir a razão pela qual não era livre - apesar de não gostar de trabalhar no cinema, esta forma de expressão agradava-me. Ao fazermos este filme não pensamos numa distribuição comercial.
Era um projecto experimental e o nosso objectivo principal era justamente aprender com a prática, não era senão a tentativa de aprendizagem de uma profissão. Creio que "Shadows" foi verdadeiramente o primeiro filme independente rodado em Nova York (sem imposições ou cortes por parte dos investidores).
Quando a rodagem teve início tive a sensação que não duraria mais de dois ou três meses, mas na realidade ocupou-me três anos. Fiz todos os erros possíveis. Nem me consigo lembrar de todos. Portei-me realmente mal. Bati o record de ignorância em matéria de cinema. Mas foi muito enriquecedor. Quando terminei a primeira versão do filme, organizamos duas sessões no Paris Theatre de Nova York, o que se revelou um fiasco completo. Não havia senão uma pessoa na sala, e era meu pai, que o qualificou de "puro", não bom, simplesmente "puro".
Apaixonei-me pela câmara
Estava cheio de virtuosidade técnica... de ângulos impossíveis, com uma montagem ultra-sofisticada e muito jazz como música de fundo. Era um filme inteiramente intelectual - o que implica uma dimensão humana. Apaixonei-me pela câmara, pela técnica, pelos belos enquadramentos, da experimentação pelo puro prazer (...)
A única coisa que me ficou na memória, depois de pôr de lado a primeira versão, foram as reuniões críticas dos actores acerca da globalidade do trabalho. Tinham pena de sobreviver apesar da técnica... quando caí em mim quis reparar a situação, por isso decidi prolongar a rodagem por alguns dias, reordenando a ideia original.
Submeter as personagens ao diálogo
A grande diferença entre "Shadows” e outros filmes, é que este constroi-se a partir das personagens, nos outros são as personagens que derivam do argumento - são criadas a partir dele...
Desde o início que tive a intenção de tratar de problemas reais, com os quais as pessoas são confrontadas no dia-a-dia, muito mais do que pensar numa estrutura dramática elaborada ou a submissão das personagens ao diálogo. Creio que a melhor contribuição que "Shadows" dá ao cinema baseia-se no facto de o público ir ao cinema ver pessoas (há uma quase "ditadura" dos elementos humanos) - é com elas que simpatiza, que sente empatia e se revê e não com a virtuosidade técnica(...)
"Shadows" é um filme horrível, porque vai mais longe. É um filme sobre os jovens, extremo como eles, dicotómico no seu limiar. Os jovens amam ou detestam, é dificil reconciliá-los, já que falam em termos absolutos. Em "Faces", ao contrário, não é fácil falar de homens e mulheres, adultos, que se modificam em função do estado de espiríto, das recordações, da saúde, do que se passou há dez anos ou do que se passará daqui a dez anos quando morrerem.
Não teria sido capaz de terminar "Shadows" se todos os que nele participaram não tivessem descoberto algo de fundamental: ser artista é o desejo, a loucura de se exprimir de forma absoluta. O único talento que me podem apontar é o de os deixar exprimirem-se livremente. Penso que o que há de mais inacreditável no cinema não é o filme em si, mas as condições em que é produzido. Não é tanto o trabalho, mas o reencontro, as personagens que se constroem nesse ambiente - sorrimos ou sofremos com elas - é isto que torna importante o filme aos olhos do público.
"Shadows" será sempre o meu filme preferido - simplesmente porque foi o primeiro, todos eram jovens, o que em condições "normais" é praticamente impossível, para além do facto de vivermos absorvidos durante três anos, esquecendo por completo o mundo lá fora ...
Quando faço um filme interesso-me sobretudo pelas pessoas, mais do que pela mise-en-scène."
John Cassavetes, Autoportraits, Cahiers du Cinéma, 4992