Rostos
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Categoria hospedeira: 2023
Ciclo Sob a Influência
DIA 15 | IPDJ | 18h00
ROSTOS
John Cassavetes, US, 1968, 130’, M/12
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
"Em 1964 fiz um balanço da minha carreira cinematográfica e só encontrei duas obras que valeram realmente a pena: "Shadows" e "Edge of the City". No resto do tempo ensaiei simplesmente jogos, tantas vezes estúpidos e falsamente gratificantes, do ponto de vista económico. No final desse ano nasce "FACES", com base em determinadas ligações e insatisfações diversas. A rodagem durou seis meses e custou quarenta mil dólares, três anos para a montagem e para a descoberta de um distribuidor. " FACES " tornou-se um projecto vivo porque tive literalmente muita "goela". Quando me interesso por uma coisa, não me inibo de falar. Não tinha realizado um filme "pessoal" desde "Shadows", em 1959, uma das experiências mais fascinantes de toda a minha vida. A sua lembrança jamais me abandonou, enquanto procurava tomar-me um grande realizador Hollywoodiano. Mais tarde compreendi que o meu perfil não se adaptava a esse tipo de estrutura e por isso nunca cheguei a sê-lo verdadeiramente.
Deliniei a minha ideia enquanto conversava com um grupo de amigos no café, na praia e só depois me sentei e escrevi o argumento de "FACES" e tudo teve início.
CANSADO DO CASAMENTO
Estava cansado do casamento. Não do meu. Estava cansado desses dez milhões de casais burgueses da América, que transmitem uma "auréola" brilhante a tudo o que tocam. Casados há dez, quinze anos, maridos e mulheres que têm tudo, uma casa grande, dois carros, os filhos a entrarem na adolescência - demasiado passiva devido ao bem estar material. Um dia descobri que fazia parte desse enorme grupo e que todas as pessoas que eu conhecia também o integravam.
Mas apesar do conforto e da estabilidade há um sentimento de desespero, de falta de esperança porque as pessoas são incapazes de manter uma relação. A maior parte destes casais não se apercebem de que não comunicam. É este o tema de "FACES", mostrar como as pessoas falam ou não falam entre elas.
Hoje toda a gente se acha muito inteligente: I' Foi horrível a eleição de Nixon!", "Ouviram falar do tremor de terra no Peru?" - acham que têm todas as respostas, mas quando se discutem coisas sérias como: "O que é que se passa?" "Porque é que já não satisfaz a sua mulher?", "Porque é que à noite os olhos não se fecham e contemplam insistentemente o tecto do quarto?" , "Porque não admitem que têm problemas e que é preciso resolvê-los?". O mais assustador é que as pessoas esquecem como se vive. No mundo da comunicação de massa, da comunicação instantânea, não há comunicação. Há apenas mentira, troca de palavras hostis ou o riso. Mas ninguém ri verdadeiramente. É apenas uma espécie de barulho histérico e sem jogo. Tradução : "Estou aqui e não sei porquê...”
A maior parte das cenas fundam-se na incapacidade de expressão, sobre o que as pessoas querem dizer. Maridos e Mulheres discutem por causa da televisão, ligam-na, baixam o som, apagam-na...
Raramente exprimimos aquilo que é importante, mesmo se estamos casados há muito tempo ou se o amor ainda existe.
DE UMA MANEIRA OU DE OUTRA AS COISAS ACABAM MAL
As pessoas não sabem como fazer, como amarem e serem amadas. É a tragédia do nosso tempo. Os americanos têm as melhores intenções do mundo, os melhores instintos mas no final não resta nada. Somos persuadidos a pensar que ajudamos o mundo, mas no fundo a incapacidade de ajuda começa por nós. São os homens que são as verdadeiras vitímas... é a desordem que os empurra. A vida agitada, os almoços de negócios, passar de tempos em tempos uma hora com uma prostituta, conversar com os amigos - a aventura, a coragem? Falas? Dos pequenos actos absurdos que enchem os dias.
Para uma mulher é mais simples. A existência da mulher é possível se há um pouco de ordem e se consegue expulsar alguns dos seus fantasmas. Quando se conhecem as rupturas afectivas de uma mulher conseguimos determinar mais facilmente a sua postura, os contornos da sua fragilidade. Com Gena, fiz um filme sobre os fantasmas femininos: "Opening Night". Estes fantasmas são muito importantes, é preciso aceitá-los, assumi-los.
UMA FORMA DE EXPRESSÃO LIVRE
Escrevi "FACES" numa época em que pensava que a única forma de expressão livre residia no momento em que o actor está em palco. À partida "FACES" foi escrito para o teatro. Depois decidi adaptá-lo ao cinema, fazer um filme para mim, evitando financiamentos exteriores ou a intervenção de um grande estúdio, que poderia atrofiar a criatividade. Queria realizar um filme que desse tempo e espaço aos actores. O argumento de "FACES" é criado para personagens definidas, actores que poderiam transformar a escrita em vida, actores que poderiam comunicar fé - Deus, o Estado, a crença neles próprios, enfim tudo. Pessoas que não se limitam a começar, mas que sabem acabar. Aos meus olhos é a mais bela distribuição que realizamos para um filme. À frente das câmaras, as personagens que interpretam os papéis tomam-se vectores de uma escolha miraculosa: actores que interagem, que jogam um jogo conjunto. No início tinha preparado uma versão mais reduzida, no final decidi filmar tudo, mesmo se o filme durasse dez horas ou a rodagem seis meses. Algo que não se pode fazer na América sem dinheiro. Para iniciar as filmagens tínhamos dez mil dólares, o filme acabou por ter um custo de duzentos mil. Para reunir o dinheiro, fiz vários papéis em cinco filmes durante três anos: fiz de actor para financiar os filmes que queria fazer. Os que trabalharam comigo não o fizeram pela glória ou pelo dinheiro, mas pelo prazer de criar.
Assim surge "FACES", um pouco mais do que um filme - um modo de vida, um filme contra o Poder, as instituições que impedem os homens de se exprimir livremente.
Apesar da minha histeria e tristeza, resultantes da confusão de emoções, escrever '"FACES" foi relativamente fácil. Para registar esta história sobre o papel, só foi preciso muita atenção e a recordação daqueles que "balançaram" os alicerces da minha existência. Quis realizar "FACES" porque começava a detestar a minha idade e, sobretudo aqueles adultos que, sem reflectir, vão às discotecas, tentam estar na moda a todo o custo e que não entendem nada.
NÃO PENSAR POR NÓS PODE LEVAR-NOS À TRAGÉDIA
Quis mostrar a incapacidade de comunicação, o que os pequenos nadas fazem às pessoas, como não compreendemos determinadas coisas ... certas emoções e como tudo isto é trágico. O resultado foi um tiro certeiro à América burguesa contemporânea, no qual exprimo o meu horror pela sociedade em geral, ao focar o olhar sobre um casal - fora de moda por natureza - que vive confortavelmente na sua bela casa, num bairro residencial, sem grandes ambições (...)
Em "FACES", o casal Richard e Maria Frost é posto a nu... o argumento dá-lhes a possibilidade de se confrontarem com novas situações, a saída de casa, a descoberta de uma nova sensualidade nos braços da juventude, a liberdade face ao conformismo da sua existência, colocando-os num contexto diferente, o de uma nova moral: as "putas" de luxo, as pessoas "in", os pensamentos secretos e as reacções dos amigos quando caiem todas as barreiras (...)
Desde o início da rodagem, em 1965, até ao bater da última claquete, seis meses mais tarde, passando pela saída da cópia definitiva em 1968, ninguém se sentiu inibido em dizer o que pensava do resultado final. Apesar da desordem que às vezes sou capaz de instaurar, sobretudo quando quero que um actor descubra as coisas por si. As mulheres interpretam os papéis do seu ponto de vista, encontram sozinhas as razões de existência e a construção das personagens. Expõem as suas emoções, o que resulta num estado de entrega total e ao mesmo tempo de profunda inocência. Para os homens não é assim tão claro. A esperada existência bruta sufoca o sonho. As personagens que interpretam são forçadas a jogar o jogo do Poder, utilizam aquilo que aprenderam - a técnica do negócio - para verificar que são socialmente aceites. Fazem amor para serem respeitados, procuram aplausos, transportam a vida profissional para além do escritório, como se os seus vícios morais e aborrecimentos pudessem desaparecer se as mulheres os acharem sedutores... mas no interior de um tal sistema, os homens estão sempre em vantagem - têm a possibilidade de se comparar com o resto do mundo, um mundo que conhecem melhor que ninguém.
UM EGO PREPOTENTE E CABOTINO
É esta necessidade em provar alguma coisa - este ego prepotente e cabotino - que acaba por ferir as personagens do filme. Porque a sua existência não tem um objectivo e é aqui que reside a tragédia. Nenhum esforço é bem sucedido quando se tenta endireitar a vida. Os filmes de sexo da Playboy, as conversas de bêbados em cocktails, não afectaram o nosso século, muito para além disso acabaram por modificá-lo. Há um tal abismo entre homens e mulheres que a sexualidade não chega, não é suficiente sem uma base de violência, neurose e de morte, concebidos como estimulantes. A ideia do amor como um universo misterioso e virgem já não tem lugar na nossa imaginação profunda. É tudo isto que "FACES" questiona. Este dilema caótico a que os homens se tentam adaptar, a uma vida difícil, às responsabilidades. A sociedade deve romper com os preconceitos e os falsos ídolos e, se necessário, partir do zero, para que homens e mulheres possam redescobrir a ternura.
Não há lugar para a improvisação em "FACES". "SHADOWS" fora totalmente experimental. Tinha como objecto a juventude e esta não conhece restrições. "FACES" fala-nos de uma idade em que os corpos e as almas amadureceram, para a qual as restrições são visíveis a todos os níveis do comportamento. Num filme deste tipo a acção totalmente liberal transformar-se-ia rapidamente em bondade, em complacência. Seria muito redutor. Foi necessário acentuar os traços de rigidez, para delinear esta faixa etária em toda a sua complexidade, simplicidade e frustração, mesmo ao nível do jogo dos actores. Realizei planos muito aproximados para praticamente todas as cenas. Diria que rejeitamos quase tudo o que filmámos no primeiro mês, não porque não fossem excelentes actores ou porque a sua performance não fosse exemplar, o facto é que não os detinha com frases do tipo: "É preciso andar mais, para que fiquem mais ao fundo". A minha direcção de actores tinha um lado completamente amador e ao mesmo tempo a minha presença real era a de um tirano, aguardando apreensivo o milagre. Tenho consciência de que fui brutal com os actores. Necessitava de obter alguma coisa, para mim só o resultado importa. Insistia para que as personagens fossem perfeitas, muito para além de tudo o que já tinha realizado (...).
Não é necessário ser-se um génio para saber que se é bom. É preciso ser idiota para fazer um compromisso em relação ao qual não temos a certeza do nosso desempenho. Este sentido pode levar muito tempo a conseguir, mas quando temos a certeza que existe, durará toda a vida. Muita gente me pergunta acerca da demora para terminar "FACES" - quatro anos. E quantos para sairmos do Vietnam? Se foram precisos tantos anos para chegar ao ponto máximo da destruição, porque não poderia ter tido direito a quatro, para formar algo de construtivo? (...)
A minha cena favorita? Aquela entre Florence, a mulher madura, e o hippie. Nela vemos uma mulher, já um pouco ultrapassada, que tenta seduzir um jovem, enquanto dança numa discoteca. No jogo da sedução ensaia todos os truques, sem se aperceber do ridículo, do patético da situação. Deseja-o, quere-o na sua cama. Luta e recusa-se a renunciar. Será que não é possível desesperar-se para afastar os seus fantasmas - não é melhor perder-se do que sofrer e sumir em silêncio?(...)
Nunca faria um filme cujo argumento não tivesse sido escrito por mim. Realizar um filme é um acto muito pessoal. Para além de que não confio em ninguém.
COMO OS BEATLES
Os cineastas deveriam fazer como os Beatles que escreviam as suas próprias canções. Parece-me inacreditável que um realizador permita a qualquer um a escrita do argumento do filme que vai realizar. No limite, posso compreendê-lo se está no início de carreira, mas utilizar esta estratégia continuamente não é algo que me pareça possível. Um cineasta deve criar, no sentido real do termo, os seus filmes. É muito excitante trabalhar uma ideia. Escrevo, reescrevo, grito. Todos os meios são eficazes! Não creio que haja um método. A única regra é fazer o nosso melhor.
John Cassavetes. Autoportraits, Cahiers du Cinéma, 1992