A Bela de Dia
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Categoria hospedeira: 2023
HOMENAGEM A GRAÇA LOBO | 6 JAN |IPDJ | 18H00
A BELA DE DIA, Luis Buñuel,FR/IT, 1967, 101’, M/16
Escolha de Olga Fonseca
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
Le Moine (O Monge) foi abandonado (Ado Kyrou viria a realizá-lo alguns anos mais tarde) e, em 1966, aceitei a proposta dos irmãos Hakim de adaptar Bela de Dia, de Joseph Kessel. O romance parecia-me bastante melodramático, mas bem construído. Além disso, dava-me a possibilidade de traduzir em imagens alguns dos devaneios de Séverine, a protagonista, interpretada por Catherine Deneuve, e traçar o retrato de uma jovem burguesa masoquista.
O filme também me permitia descrever com exactidão alguns casos de perversão sexual. O meu interesse pelo fetichismo já era patente na primeira cena de Él e na cena dos botins do Diário de uma Criada de Quarto, mas não quero deixar de dizer que para mim a perversão sexual representa apenas uma atracção teórica e exterior. Diverte-me, interessa-me, mas não há nada de perverso no meu próprio comportamento sexual. O contrário seria de estranhar. Creio que um perverso não gosta que a sua perversão seja exibida em público, é o seu segredo.
Tive um dissabor ao fazer este filme. Queria filmar a primeira cena no restaurante da gare de Lyon, em Paris, mas o gerente respondeu ao meu pedido com um rotundo não. Ainda hoje, muitos parisienses desconhecem a existência daquele local, para mim é um dos mais belos do mundo. Por volta de 1900, na própria estação, no primeiro andar, pintores, escultores e decoradores conceberam uma sala de ópera dedicada à glória do comboio e dos países para onde nos leva. Quando estou em Paris, vou lá com alguma frequência, por vezes sozinho. Almoço sempre no mesmo sítio, do lado dos carris.
Em Belle de Jour voltei a encontrar Paco Rabal, depois de Nazarín e Viridiana. Gosto do actor e gosto do homem, chama-me “meu tio” e eu chamo-lhe “meu sobrinho”. Não utilizo qualquer técnica particular para trabalhar com os actores. Tudo depende da qualidade deles, do que me propõem ou dos esforços que devo desenvolver para os dirigir quando são mal escolhidos. De qualquer forma, a direcção de actores obedece invariavelmente a uma visão pessoal que o realizador sente, mas nem sempre consegue transmitir.
Neste filme lamento alguns cortes estúpidos que, segundo consta, foram exigidos pela censura. Em particular a cena entre Georges Marchal e Catherine Deneuve em que ela está deitada num caixão enquanto ele chama pela filha, e que devia ter lugar numa capela privada, depois de uma missa celebrada sob uma esplêndida cópia do Cristo de Grünevald, cujo corpo torturado sempre me impressionou. A supressão desta missa altera sensivelmente o ambiente da cena.
De todas as perguntas irrelevantes que me fizeram acerca dos meus filmes, uma das mais frequentes e obcecantes diz respeito à pequena caixa que um cliente asiático traz consigo ao bordel. Ele abre-a, mostra o seu conteúdo às raparigas (nós não o vemos). As raparigas recusam soltando gritos de horror, excepto Séverine que se mostra mais interessada. Não sei quantas vezes nos perguntaram, mulheres sobretudo: “O que há na caixinha?” E como não faço a mais pequena ideia, a única resposta possível é: “O que quiser.”
Filmado nos estúdios de Saint-Maurice (que hoje já não existem, palavras que surgem neste livro como um refrão) enquanto Louis Malle realizava Le voleur (O Ladrão de Paris) no plateau ao lado, onde o meu filho Jean-Louis trabalhava como assistente, Belle de Jour deve ter sido o maior sucesso comercial da minha vida, um sucesso que atribuo mais às putas do filme que ao meu trabalho.
A partir do Diário de uma Criada de Quarto, a minha vida quase se confunde com os filmes que realizei. Eis porque acelero o ritmo desta narrativa que se torna monótona. Não voltei a deparar-me com problemas graves no trabalho e a minha vida organizava-se com simplicidade: estabelecido na Cidade do México, vinha todos os anos passar alguns meses em Espanha e em França para escrever um argumento ou filmar. Fiel aos meus hábitos, ficava nos mesmos hotéis e ia aos mesmos cafés, os que resistiam à passagem do tempo.
Em todos os meus filmes europeus tive condições de rodagem muito mais confortáveis que aquelas a que me tinha acostumado no México. Escreveu-se muito acerca de cada um dos meus filmes. Só deixarei umas palavras rápidas, para a memória futura.
Ainda que eu considere que na fabricação de um filme não há nada mais importante que um bom argumento, nunca fui um homem de escrita. Em quase todos os meus filmes (excepto quatro) precisei de um escritor, um argumentista, que me ajudasse a pôr a história e os diálogos preto no branco. Isto não significa que esse colaborador seja um mero secretário encarregue de assentar o que eu digo. Pelo contrário. Ele tem o direito e o dever de discutir as minhas ideias e propor as dele, mesmo se, em definitivo, sou eu quem deve decidir.
Ao longo da vida trabalhei com vinte e oito escritores diferentes. Recordo-me sobretudo de Julio Alejandro, um homem do teatro, um bom escritor de diálogos, e Luis Alcoriza, enérgico e susceptível, que há muito escreve e realiza os seus próprios filmes. Aquele com quem mais me identifiquei foi sem dúvida Jean-Claude Carrière. A partir de 1963, escrevemos seis filmes juntos.
Num argumento, o essencial parece-me ser o interesse mantido por uma boa progressão, que não dê um instante de repouso ao espectador. Pode discutir-se o conteúdo de um filme, a sua estética (se a tiver), o seu estilo, a sua tendência moral. Nunca deve ser aborrecido.
Luis Buñuel, O Meu Último Suspiro, Ed. Fenda, Lisboa, 2006
Jean-Claude Carrière entrevistado por Benoît Gautier, L’Express, em 13 de Julho 2011 [excerto]
Bela de Dia é o maior sucesso comercial da carreira de Buñuel…
Eu estava a trabalhar n’O Ladrão de Paris de Louis Malle quando Luis Bunuel me propôs Bela de Dia. A Catherine Deneuve é absolutamente formidável no filme. Diz que, no mundo inteiro, de cada vez que tem uma entrevista, lhe fazem perguntas sobre o Bela de Dia. A meu ver, este papel feminino representa a quintessência da actriz. Varre o incrível campo que vai da virgem à puta. A imagem pura de Deneuve como um ícone religioso contrariado por uma neurose que a degrada… Estávamos conscientes de que o livro de Joseph Kessel era um romance de leitura fácil, um melodrama atingido pela irrealidade. Por isso, quisemos opor a essa irrealidade, a realidade absoluta dos fantasmas femininos. Fiz muita pesquisa. Estive com Buñuel nos bordéis de Madrid e conversámos com o seu sobrinho, que era psiquiatra. Foi ele que, na terceira versão do guião, nos fez ver que estávamos a escrever o retrato de uma masoquista. Mantivemos então esse ponto de vista. Jacques Lacan passava o filme nos seus seminários de psicanálise.
E com Buñuel, acabou por fazer de um romance mediano uma obra-prima do cinema!
O sucesso de A Bela de Dia acaba por ser inconsciente. Muitas mulheres reconheceram-se nos fantasmas sem ousar admiti-lo. Aquando da sua estreia, lembro-me de um artigo muito mau de Michel Cournot no Le Nouvel Observateur. Ele escrevia que com este filme inútil, Buñuel estava morto! Pois, A Bela de Dia conseguiu o Leão de Ouro em Veneza em 1967.
É o filme mais hitchcockiano de Buñuel. Ele faz por lá uma aparição, o penteado de Catherine Deneuve faz lembrar o de Kim Novak em Vertigo, Séverine é frígida como Marnie. A linha pura e intemporal das roupas de Yves Saint-Laurent faz lembrar as de Tippi Hedren em Os Pássaros…
Hitchcock tinha declarado a um jornalista americano que lhe perguntava qual era o realizador que mais admirava: “Excepto eu, Buñuel.” Aquando de um almoço mítico em Hollywood, fiz de tradutor entre estes dois Mestres. Hitchcock conhecia de cor os filmes de Buñuel. Ele admirava sobretudo a sequência de Tristana, adaptada de um romance de Benito Perez Galdós, onde descobrimos a heroína depois da sua amputação. Ela toca piano. A câmara desce sobre a sua única perna, e depois sobe de novo para o rosto de Deneuve, que se tornou uma máscara dura. Tristana tornou-se numa nova mulher. Buñuel respeitava muito também o cinema de Hitchcock, mas considerava-o uma starlette por causa das suas famosas aparições. Quando Luis apareceu em A Bela de Dia, disse-lhe: “Agora há duas starlettes!”. Isso fê-lo rir!
Em relação às roupas do filme, Catherine, que era muito jovem, queria vestir as mini-saias então na moda. Buñuel opôs-se firmemente. Fui eu que dei a ideia do encontro entre Deneuve e Saint-Laurent. E penso que foi a única vez em que Buñuel foi a um desfile de moda! (risos) Yves Saint-Laurent, com a sua inteligência habitual, fez um trabalho admirável. Colaborei muitas vezes com ele e ele deu sempre provas de um grande sentido teatral e cinematográfico inaudito. Este filme é de uma beleza enorme. Sem nenhum cálculo de direção de cena ou de fotografia. E continua a resistir ao tempo, como se diz...