O Pub The Old Oak
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
Dia 4 | IPDJ | 21H30
O PUB THE OLD OAK
Ken Loach, UK/FR/BE, 2023, 113’, M/14
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
NOTAS DE PAUL LAVERTY (ARGUMENTISTA)
“Este foi o filme que mais nos custou a fazer, ou assim me parece. Há mais de 4 anos, eu, o Ken e a Rebecca discutimos a ideia de tentar fazer um terceiro filme sobre a zona Nordeste do Reino Unido. Pode não o parecer, uma vez concluído o filme, mas no início e em muitos momentos intermédios, este é sempre um processo muito mais frágil do que parece visto de fora. É como uma aposta.
Como sempre, encontrámos pessoas brilhantes e generosas ao longo do caminho que nos deram o seu amor e nos inspiraram. As antigas aldeias mineiras são únicas. Numa das minhas primeiras viagens, tive a sorte de conhecer o padre John Barron junto à sua bela e antiga igreja, situada no topo da vila, com vista para as colinas. Mais tarde, nesse mesmo dia, haveria um funeral. Uma jovem mãe levara o filho à escola primária, voltara para casa e enforcara-se. Essa imagem e imaginar os seus últimos dias assombraram-me por muito tempo, e a Ken também, quando lhe contei a história. Conheci outra mulher mais velha que enumerou os nomes de outras jovens que se suicidaram...
Percorrendo muitas dessas aldeias, foi impressionante conversar com os membros mais velhos da comunidade que tinham sido mineiros, ou com familiares de mineiros. Uma extraordinária senhora idosa de noventa e tal anos era enfermeira e cuidou dos feridos (um deles era o pai do seu vizinho, que ainda hoje vivia ao lado dela) do desastre na mina de Easington em 1951, no qual morreram 83 mineiros. Ouvir pessoas vibrantes como ela e outras que estiveram envolvidas na greve dos mineiros em 1984 atestou um poderoso sentido de espírito comunitário, coesão e clareza política que contrastava com o desespero de muitos no presente.
Tornou-se evidente que “o passado” deveria ser uma personagem do nosso filme. Enquanto deambulava por aquelas aldeias, conversando com jovens e idosos, e reparava no abandono manifesto das suas ruas principais, interroguei-me sobre a vida interior e o espírito da geração mais velha em comparação com a trágica história da jovem mãe que se suicidara. Como é que a solidariedade comunitária, tão bem ilustrada pela distribuição de comida durante a greve dos mineiros, se desintegrara em isolamento e desespero?
Quando eu e o Ken nos encontrámos, ocorreram-nos outras perguntas. Como é que uma classe trabalhadora outrora organizada com sindicatos tão activistas deu origem ao mundo de Ricky – a personagem principal do nosso filme PASSÁMOS POR CÁ – que abraçou a narrativa do mercado livre e se considerava dono do seu próprio destino, apesar de se encontrar espartilhado por uma aplicação digital que media cada momento de sua vida profissional.
Como é que DANIEL BLAKE, na nossa outra história, acabou sozinho, intimidado e destruído pela brutalidade sistemática da burocracia estatal que visou os nossos cidadãos mais vulneráveis? As vidas de Ricky e de Daniel Blake não aconteceram por acaso, deveram-se antes a uma série de escolhas políticas. Como poderíamos fazer com o passado se manifestasse no presente, nesta história?
À medida que viajávamos por aquelas comunidades, tornou-se óbvio que as infra-estruturas estavam a desintegrar-se: lojas fechadas, piscinas, salões paroquiais, bibliotecas, mas o que era ainda mais evidente era o número de pubs que estavam vazios ou que tinham sido demolidos. Tudo isto, como sempre, reflectia mudanças mais amplas na economia desde a greve dos mineiros em 1984.
E se tivéssemos como personagem um bar antigo, o último da aldeia, aguentando-se teimosamente? O último espaço público existente, ligado ao passado, mas território contestado no presente? Parecia-nos que THE OLD OAK tinha raízes que remontavam ao passado, o que poderia ajudar-nos a desvendar muitos dos conflitos e contradições do presente.
Encontrei um caderno antigo com um rabisco: “Tommy Joe Ballantyne perdeu a fé”. Não sei de onde surgiu essa personagem imaginária, mas fiquei muito aliviado por a conhecer. TJ exigiu o seu lugar no The Old Oak. Resta saber porque é que TJ perdeu a fé e fica a questão ainda mais importante de saber se ele poderá voltar a encontrar a esperança.
Numa das aldeias, vi um sírio idoso a deambular pelas ruas. Envergava o seu traje tradicional o que parecia quase surreal quando se cruzou com jovens nas esquinas com os seus fatos de treino e os seus grandes cães. Parecia alheio a tudo o que o rodeava e era difícil não imaginar quão traumatizado estaria devido à guerra na Síria. Conhecemos famílias sírias maravilhosas, tanto no Nordeste como na Escócia, que partilharam generosamente as suas histórias connosco e nos encorajaram.
Devido às habitações ultra-baratas em muitas das antigas aldeias mineiras, muitas vezes propriedade de senhorios que compraram as casas em leilões online, muitas famílias sírias e famílias de outras zonas do Reino Unido deram consigo a morar ali. Também ouvimos, através de activistas nas comunidades, que as autoridades locais de outras partes do país tinham feito acordos com senhorios nessas aldeias no Nordeste, transferindo para elas alguns dos seus próprios inquilinos, muitos deles com problemas profundos, sem avisar as autoridades locais homólogas. Ouvimos o primeiro indício dessas políticas brutais quando fizemos, EU, DANIEL BLAKE e foi por isso que a personagem Katie acabou em Newcastle. Há mais autoridades locais irresponsáveis a fazer o mesmo, despejando os seus problemas noutro lado, em vez de criar um plano coerente para os resolver. As prisões também anunciaram aos reclusos alojamento barato nessas aldeias.
Não é de admirar que muitos dos que lá viviam se sentissem prejudicados e estivessem convencidos de que carregavam uma parte injusta do fardo sem o apoio adequado. Este é o território febril do qual a extrema direita se continua a aproveitar para semear o seu veneno. Teria sido fácil, e talvez mais melodramático, ter isso como parte da nossa história, mas sentimos que o desafio de criar a personagem Charlie era muito mais rico e revelador. O que leva Charlie, um homem decente, parte da comunidade, a desgastar-se com as circunstâncias e fazer aquelas escolhas? Isso levanta a questão maior de como o desespero, a injustiça e a falta de arbítrio nas nossas vidas afectam a forma como nos tratamos uns aos outros. Como é que isso leva ao medo e ao ódio? Como é que uma comunidade traumatizada reage quando se vê lado a lado com outra? Aquilo que escolhemos ver é outra questão que nos fascinou. Foi assim que imaginámos a personagem Yara que nos ajudou a abrir a história.
Temos de ter a curiosidade para olhar, para entender. Conhecemos algumas pessoas extraordinárias nas comunidades que tiveram essa atitude perante os sírios recém-chegados, o que mais uma vez levanta a eterna questão da esperança: qual é a sua fonte e como alimentamos este combustível de mudança?
A esperança é algo com que lutámos desde as nossas primeiras conversas sobre esta história em 2019. Na verdade, é uma questão que se nos impõe desde as nossas primeiras colaborações no início dos anos 90. O que me leva ao dia 17 de Junho de 2022, quando filmámos uma cena na deslumbrante Catedral de Durham, um dia que nunca esquecerei por muito anos que viva. Pareceu-me adequadíssimo que este fosse também o dia do 86º aniversário do Ken.
Isto não é algo que se registe habitualmente nas notas de produção, mas como este é o último filme que faremos com o Ken, quero dizê-lo para que fique registrado.
Fizemos filmes juntos em muitas partes do mundo e participámos em muitos festivais e reuniões de todo o tipo. Vi o Ken em acção sob a mais severa das pressões, desde a sua doença na Nicarágua no nosso primeiro filme, e, não menos importante, até o último dia das filmagens de O PUB OLD OAK, quase 30 anos depois, ao tentar filmar uma grande cena em contra-relógio, por entre aguaceiros. Desde crianças a ministros do governo, ele sempre tratou toda a gente com gentileza e um carinhoso humor. Ele tem convicções políticas profundas e enfrenta os adversários políticos de frente, mas nunca, mesmo no seu ponto de maior exaustão, o vi tratar alguém, fosse qual fosse a sua origem política, racial ou religiosa, com outra coisa senão com o seu mais profundo respeito; está-lhe no ADN e faz dele um poderoso exemplo.
Uma última coisa. Realizar um filme, mesmo com o melhor apoio do mundo, é uma tarefa solitária. É pior do que um escritor que enfrenta uma página em branco. Chega um momento em que é preciso decidir se se mergulha ou não. A equipa está à espera e todos os olhares estão postos em nós. Depois do COVID, teria sido fácil para o Ken abandonar O PUB OLD OAK, que viria sempre a ser um grande desafio. Foram muitos meses de trabalho e viagens mesmo quando o filme era apenas uma possibilidade. Completar o elenco demorou mais de 6 meses, antes mesmo dos preparativos e das filmagens. Às vezes, quando ele voltava para o hotel às onze da noite, eu receava que aquela sobrecarregada agenda, que até desafiaria um jovem na casa dos 30 anos, fosse demais.
Estou convencido de que a sua convicção política o ajudou a avançar. Talvez o faça sorrir eu citar Santo Agostinho, que há mais de mil e quinhentos anos disse que a esperança tinha duas lindas filhas: a primeira, a raiva perante a realidade; a segunda, a coragem de tentar mudá-la. Esta tem sido a sua vida profissional. Que corpo magro para carregar tanta coragem!”
À CONVERSA COM KEN LOACH
De onde veio O PUB OLD OAK?
Tínhamos feito dois filmes no Nordeste, histórias de pessoas aprisionadas nessa sociedade fracturada. Inevitavelmente, ambos terminaram mal.
Contudo, conhecemos lá muitas pessoas fortes e generosas que reagiram a estes tempos sombrios com coragem e determinação. Sentimos que tínhamos de fazer um terceiro filme que reflectisse isso, mas que não minimizasse as dificuldades que as pessoas enfrentam nem o que sucedeu naquela zona nas últimas décadas. Havia outra história, mais comprida, para contar, se conseguíssemos encontrá-la.
Um ponto de partida foi o abandono real da região. As antigas indústrias desapareceram – a construção naval, a mineração de aço e carvão – e pouco as substituiu. Muitas das aldeias, outrora comunidades prósperas com grandes tradições de orgulho na sua tradição de solidariedade, desporto local e actividades culturais, foram deixadas ao abandono por políticos, tanto conservadores como trabalhistas. Descobrimos que as pessoas não esperavam nada dos Conservadores, mas denunciaram o fracasso do Partido Trabalhista, dizendo “não fez nada por nós”. Embora a região tivesse um coração trabalhista, com Tony Blair e Peter Mandelson como deputados locais, tal não fez muita diferença. As comunidades foram simplesmente abandonadas. Muitas famílias partiram, as lojas fecharam, bem como as escolas, as bibliotecas, as igrejas e a maioria dos espaços públicos. Onde não havia trabalho, a esperança esvaiu-se e foi substituída pela alienação, a frustração e o desespero. De forma alarmante, surgiu a extrema direita. Os municípios de outras zonas mais prósperas enviaram os mais vulneráveis e carentes, pessoas vistas como “problemas”, dependentes dos subsídios de habitação para conseguir pagar a renda, para locais onde o alojamento era barato. Os conflitos eram inevitáveis.
Depois houve outro problema. O governo aceitou finalmente refugiados da terrível guerra na Síria. Vieram para cá menos pessoas do que para a maioria dos países europeus, mas tiveram de ir para algum lado. Mais uma vez, não surpreendeu que o Nordeste tivesse recebido mais do que qualquer outra região. Porquê? Habitação barata e uma área a que a imprensa pouca atenção dá. O Paul ouviu as histórias do que aconteceu quando as famílias sírias chegaram e começámos a pensar que aquela era a história que devíamos contar. Mas primeiro tínhamos de a compreender. Duas comunidades que vivem lado a lado, ambas com problemas graves, tendo uma delas o trauma de ter escapado a uma guerra de crueldade inimaginável, agora em luto por aqueles que tinha perdido e preocupada com os que ficaram para trás.Sentiam-se estranhos numa terra estrangeira. Estes grupos podem viver juntos? As opiniões dividem-se. Em tempos tão sombrios, onde está a esperança? Parecia uma pergunta difícil, para a qual eu, o Paul e a Rebecca achámos que devíamos procurar uma resposta.
Como é que essas considerações iniciais evoluíram para as personagens e a trama de O PUB OLD OAK?
Eu e o Paul conversámos muito sobre a situação em geral. Então, o Paul sugeriu centrar a história num pub, que se chamaria The Old Oak. O proprietário, TJ, encarnaria a luta, com um histórico de participação activa na comunidade, mas agora assolado por problemas. As histórias são sobre as relações, e depois o Paul escreveu sobre uma mulher síria que aprendera inglês nos campos de refugiados trabalhando com voluntários internacionais e que aprendera sozinha a ser fotógrafa. Essas experiências ampliaram a sua perspectiva sobre o mundo ao seu redor. A sua amizade com TJ é o cerne da história.
Como quis retratar as famílias sírias que chegam à aldeia?
O princípio é sempre o mesmo. Ouvir, observar e permitir que as pessoas sejam fiéis a si mesmas. A escolha dos actores é fundamental. Ficou claro que os sírios no filme deviam ser aqueles que se estabeleceram na zona. O argumento do Paul deu-lhes a liberdade de contribuir para que a história fosse um verdadeiro reflexo das suas experiências. Os pormenores foram importantes e todos aprendemos muito. Como em todos os grupos, as pessoas são diferentes. Algumas famílias eram tradicionais, outras nem tanto. Alguns tinham aprendido inglês; alguns tinham achado isso difícil – compreendi-os bem. Todos foram generosos com o seu tempo, muitos deles comprometeram-se de todo o coração com o projecto e os bolos que trouxeram para as filmagens tornaram-se lendários! Tivemos a sorte de encontrar duas pessoas que nos guiaram no desenvolvimento da nossa relação com as famílias sírias: Yasmeen Ghrawi foi inestimável durante o casting e ocasionalmente durante as filmagens; Sham Ziad tornou-se o nosso elo com as famílias, sensível a todas as questões que iam surgindo no dia a dia. Às vezes, havia que alterar ligeiramente os pormenores, à medida que avançávamos.
Algumas mães sírias não se sentiam confortáveis a ser vistas a entrar num pub e faziam questão de manter a cabeça coberta. Havia sempre uma solução e era importante que todos se sentissem respeitados e à vontade. Houve muitas gargalhadas e fizemos muitos amigos.
NOTAS CRÍTICAS
“Espero que este não seja o último filme de Loach, mas se for, ele rematou com uma declaração de fé e compaixão pelos oprimidos.” – THE GUARDIAN
“Ken Loach dificilmente poderia ter emitido um canto de cisne mais ressoante, oportuno ou até irado do que este filme que combate a decadência da compaixão nacional.” – SCREEN INTERNATIONAL
“Ken Loach despede-se com um hino espinhoso e melancólico à comunidade e à solidariedade (…) Se este é o fim do caminho dum grande cineasta britânico, é um final atencioso e repleto de amor. The old oak do cinema britânico é um marco incontornável.” – TIME OUT
“Um filme extraordinariamente solidário (…) Loach pode estar mais irritado do que nunca, culpando não apenas os políticos, mas até o próprio povo britânico, por aceitar regimes autoritários cada vez mais de direita.” – DEADLINE
“Ken Loach dificilmente poderia ter emitido um canto de cisne mais ressoante, oportuno ou até irado do que este filme (…) O PUB OLD OAK está entre os principais dramas de estado da nação de Loach” – SCREEN DAILY