Retrato da rapariga em Chamas
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
18 JUN | Esplanada IPDJ | 22h00
Retrato da Rapariga em Chamas, Céline Sciamma, França, 2019, 121', M/12
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
críticas
“Retrato da Rapariga em Chamas”: a verdade emocional de um filme sublime
A história de um romance homoerótico que, arrancando em lume brando, depressa se incendiará
É sob o signo da distância que o filme começa, aterrando numa escola de pintura para raparigas na França do séc. XVIII, onde uma jovem professora vai instruindo as suas alunas, enquanto posa para elas. A descoberta, na sala, de uma tela outrora pintada pela professora, desencadeia um flashback que nos transportará com ela até uma ilha da Bretanha. Aí, a protagonista instalar-se-á numa mansão para levar a cabo a missão da qual foi incumbida por uma condessa italiana: a de pintar, em segredo, o retrato da sua filha, que — contra sua vontade — foi prometida em casamento a um aristocrata milanês. Para furtar a imagem de uma modelo que recusa posar, ela far-se-á passar pela sua dama de companhia, passeando com ela durante o dia, e aproveitando as noites para forjar o retrato.
Eis a base de um filme que condensa para intensificar, reduzindo ao mínimo o elenco e o seu espaço-tempo (o grosso da ação decorre na mansão, ao longo de um par de semanas), para melhor analisar a relação das duas mulheres. Neste quadro, é notável verificar o modo como o gradual afunilamento da escala visual (os planos médios, em flirt com a pintura naturalista da época, vão sendo cada vez mais intervalados por grandes planos) traduz a crescente intimidade das personagens, que cedo se tornam cúmplices: a modelo aceita posar para a pintora, após esta destruir o primeiro retrato que dela fez.
Essa amizade prepara um romance homoerótico que, arrancando embora em lume brando, depressa se incendiará. Na sua descrição, o que é magnífico é a forma como a criação do retrato corresponde à aproximação das amantes: quanto mais elas superam a distância entre pintora e modelo, mais a obra ganha vida. É certo que Sciamma abusa do simbolismo — seja ele sensível (a imagem e o som do fogo), seja ele literário (o mito de Orfeu) —, mas esse investimento nunca perturba a verdade emocional do filme, cujo epílogo comete a proeza de nos oferecer um corpo que verte lágrimas em chamas. Sublime.
Vasco Baptista Marques, Expresso
Pintura e a pose, numa palavra, o amor
Venceu o prémio de argumento em Cannes: "Retrato da Rapariga em Chamas", de Céline Sciamma, é um belo exercício sobre os poderes secretos da pintura. Com duas actrizes em estado de graça: Adéle Haenel e Noémie Merlant.
Dir-se-ia que entre pintura e cinema sempre existiu um jogo de sedução que já deu origem a filmes tão invulgares como "A Bela Impertinente", de Jacques Rivette, ou "Van Gogh", de Maurice Pialat (ambos franceses, ambos de 1991). No caso de "Retrato da Rapariga em Chamas" — distinguido em Cannes/2019 com o prémio de argumento —, dir-se-ia que a perturbação da pintura começa no seu valor de troca.
Troca de quê? Ou para quê? Pois bem, no sentido de um contrato conjugal: em finais do século XVIII, Marianne chega a uma ilha da Bretanha para pintar o retrato de Héloïse, retrato esse que pode desempenhar um papel decisivo na consumação do casamento de Héloïse. Neste universo de predomínio do masculino, é no espaço do feminino que se decide a verdade dos desejos.
Acontece que nenhuma imagem, a começar pelo retrato de um ser humano, "reproduz" o que quer que seja. A sua figuração envolve sempre um elo, transparente ou inconsciente, entre aquele (ou aquela) que faz pose e aquele (ou aquela) que transforma essa pose em matéria visual. Dito de outro modo: no jogo de olhares que se instala, Marianne e Héloïse são tocadas pelo fogo do amor.
Céline Sciamma é uma cineasta dos enigmas passionais e, mais do que isso, da dimensão mais secreta das identidades sexuais — lembremos o seu magnífico "Tomboy/Maria-Rapaz" (2011). Agora, através do requintado contributo de Noémie Merlant e Adèle Haenel, respectivamente como Marianne e Héloïse, Sciamma encena qualquer "coisa" que escapa às regras correntes das alianças humanas, expondo a dimensão sobre-humana de uma entrega amorosa — cinema do visível, pressentimento do invisível.
João Lopes, rtp.pt/cinemax