Ordem Moral
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
ciclo Na Corda Bamba
22 OUT (5ªf) | IPDJ | 21h30
ORDEM MORAL, Mário Barroso, Portugal, 2020, 101’, M/14
ficha técnica, sinopse e trailer: aqui
nota do realizador
A história que pretendemos contar é pública e conhecida: em 1918, Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira e proprietária do Diário de Notícias, abandona o luxo social, cultural e familiar em que vive para fugir com um insignificante chauffeur, 26 anos mais novo. As consequências desta sua decisão serão obviamente dolorosas e moralmente devastadoras.
Este projecto surge dum desejo, que ainda não é mais do que uma intenção: a de filmar uma actriz. As expressões duma actriz. O olhar de uma actriz. O rosto, as mãos, a pele de uma actriz. O corpo, sobretudo o corpo duma actriz. É a Maria de Medeiros.
Mais do que uma intenção, há uma realidade. Sou director de fotografia há cerca de 40 anos. Passei a minha vida a filmar e iluminar actores e actrizes, decores, bichos, planos de corte e parvoíces. Sei o que não quero. Tenho pelo Telefilme consideração e respeito, considero as "histórias" eficazmente contadas, como prova de um talento raro.
Mas neste meu projecto gostaria que a história que vamos contar não me condicione a imaginação. Procurarei que ela nos sirva de pretexto à invenção de imagens, de sons, de sentimentos. É no rosto de Maria Adelaide que gostaria de encontrar o receptáculo dos nossos medos, das nossas indignações dos nossos desejos. Mais do que a história que através dela contamos, estará sempre o grão de pele, a luz que a abandona, o desejo que a consome, o corpo que definha, a mão que treme na ternura, o olhar enlouquecido.
Mário Barroso
notas da crítica
Mário Barroso quis contar a história da mulher que queria ser livre - Ípsilon
Ordem Moral – que papelão maravilhoso! - Diário de Notícias
Mais do que escolher, somos escolhidos - Visão
A madame, o motorista, os alienistas e o marido dela - Jornal de Letras
Os homens e as mulheres têm de ser feministas, como ser antifascistas - Jornal de Notícias
O amor (não) é coisa de loucos - Visão
Nada de misericórdia! - Expresso
entrevista ao realizador
Como conheceste a figura da Maria Adelaide Cunha Coelho?
Eu tinha um tio, em segundo grau, que vivia na nossa rua e a quem chamávamos o tio-coronel, que foi sub-director do Diário de Notícias nos anos 50. Eu era miúdo e achava-lhe imensa graça, porque nos contava muitas histórias, sempre com bastante humor à mistura (ele também escrevia teatro de revista). Teria eu uns dez, onze anos, e uma das histórias que esse meu tio ― Pereira Coelho, era o nome dele ― me contou era sobre a antiga proprietária do jornal, que tinha fugido com o chauffeur. Uma mulher rica que, com quase 50 anos, decide fugir com o motorista muito mais novo era uma coisa insólita, e lembro-me de a ter achado muito corajosa.
Há uns anos, pensando num novo filme, e porque tinha um desejo imenso de filmar com a Maria de Medeiros, lembrei-me desta história. E, ao começar a trabalhar nela, ao investigar melhor a história desta mulher que me fora contada pelo meu tio (eu queria sobretudo contá-la de uma forma que não me condicionasse a imaginação), cada vez mais me convenci de que teria de ser a Maria a fazer este papel.
Isso quer dizer que ao escrevê-la, já tinham em mente a Maria de Medeiros?
Sim, sim. Era a única actriz portuguesa que se adaptava à minha visão da Maria Adelaide, que correspondia exactamente àquilo que eu pensava, depois de tudo o que investigara, de tudo o que lera. Para além do seu enorme talento, ela possui uma beleza estranha, exótica, diferente, que não tem nada a ver com a beleza tradicional. É algo que começa na expressão do rosto.
Eu tinha decidido que não queria propriamente contar uma história de amor assolapado, de que tudo aquilo que acontecera fora fruto de uma grande paixão. O que me fascinava era aquela mulher cheia de garra, que lutou e ganhou, que teve a coragem de abandonar uma família, o conforto material, e de partir. De facto, ela era uma mulher livre, uma mulher que se bateu pelo seu desejo de viver a sua liberdade. Que decidiu escolher a sua vida, coisa que na altura era extremamente difícil, como aliás se provou. E foi nesse sentido que fomos desenvolvendo o argumento, o Carlos Saboga e eu.
E o resto do elenco, que é, de facto, excepcional e funciona de uma forma muito bem oleada, digamos assim?
Foi sendo escolhido a partir daí, da escolha da Maria. Um marido que tivesse a mesma idade, e com boa figura (o Marcello Urgeghe, que conheço desde criança, e aproveitei a ironia que ele imprime na sua representação), para o chauffeur o João Pedro Mamede, o amigo do sindicato é o Albano Jerónimo, que eu tinha visto n’A Herdade, e que é fantástico, o Dinarte, que também já conheço há muitos anos, é o Egas Moniz, o João Arrais, o filho, as amigas da Maria Adelaide são todas óptimas actrizes, a Ana Padrão e, depois, de uma geração mais nova, a Júlia Palha. E ainda as participações especiais da Isabel Ruth, da Teresa Madruga e do Rui Morrison. Tentei aproveitar o melhor que pude das características de cada um.
E tu também desempenhas um pequeno papel, com um nome curioso, aliás?
Ah, isso é uma pura brincadeira... Fiz isto do “actor de participação” em vários filmes, inclusive do [João] César Monteiro. Aqui não havia ninguém para fazer aquele pequeníssimo papel, e resolvi fazê-lo eu, e, como homenagem ao César, usar o mesmo nome [Dr. Cruel, em A Comédia de Deus, 1995]. Só que, por engano, troquei-lhe o primeiro nome e só mais tarde é que me apercebi. No filme do César eu era o Dr. Pedro Cruel e aqui sou o Dr. Aníbal Cruel [risos].
Outra coisa notável no filme são os décors, fundamentais para a reconstituição de época…
Foi a sorte grande que nos saiu, termos podido filmar na casa Veva de Lima, uma casa fantástica, onde havia tertúlias e serões literários muito badalados na Lisboa dos anos 20 e 30. Era o que eu procurava. E assim pudemos recriar ali aquele teatro. A Maria Adelaide tinha uma grande paixão pelo teatro e organizava aquelas representações. No filme ponho-a a encenar e representar duas peças. Na sua casa em Lisboa, a Sóror Mariana, do Júlio Dantas, muito adequada à situação e que vem reforçar a trama do filme (e o Dantas era, de facto, amigo da família); depois, já no hospital, A Menina Júlia, do Strindberg, que inverte as situações, de género e de classe, onde ela faz o papel do criado.
O movimento da Maria Adelaide e dos seus cabelos, na abertura e no fecho do filme fazem-nos também lembrar o teatro.
Sim, há desde o início uma forte ideia de representação e o teatro é uma linha de conduta do filme. A Maria Adelaide é também uma actriz e há esse lado da representação, uma espécie de “falsidade”, de “fingimento” (e, curiosamente, da parte dela, é um pouco como no verso do Pessoa, “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”).
E é a partir daí que o Egas Moniz faz o seu diagnóstico?
Eu não queria que a ideia de um complot fosse demasiado acentuada. Hoje vivemos tempos muito “complotistas”, onde tudo é maquinação. É claro que o Alfredo da Cunha utiliza o poder que tem, mas o diagnóstico do Egas Moniz, do Júlio de Matos, do Sobral Cid, as sumidades da psiquiatria da altura, é, se virmos bem, um diagnóstico que correspondia exactamente ao pensamento e às práticas médicas daquele tempo. Não há no filme uma frase do Egas Moniz que não seja retirada dos escritos dele. O que os alienistas da altura entendiam sobre a mulher era aquilo. O que vem dar um enorme jeito ao Alfredo da Cunha. Para ele e para o filho, aquela fuga foi uma enorme humilhação. E a forma que encontraram para a ultrapassar foi declararem a Maria Adelaide louca. E dentro de um certo conservadorismo, aqueles médicos estavam de facto convencidos de que a mulher era louca.
Daí o título Ordem Moral.
Justamente. Um título que começou por ser apenas provisório e que eu não queria que ficasse...
Porquê?
Porque me parecia um bocadinho pretensioso [risos]. Não há muita gente que saiba o que é a Ordem Moral. Mas então, naquela altura os republicanos falavam de Ordem Republicana e os monárquicos, conservadores e a Igreja falavam de Ordem Moral. Eram as duas que se opunham. E era esta que a Maria Adelaide vinha colocar em causa…
A história de Maria Adelaide cruza-se um pouco com a de Salomé em O Milagre Segundo Salomé. É um princípio de autonomia feminina que antecede o teu interesse nestas personagens?
Sim, uma autonomia feminina, tanto num filme como no outro – e, já agora, também em Um Amor de Perdição [2008] –, que considero mais racional do que passional. Porque acho que a paixão acaba por ter um lado de sujeição, a pessoa é dominada pelos sentimentos. Em todos estes casos há uma vontade que vai além da paixão e procura romper com o que há, com o instituído. Por isso, a parte final da história da Maria Adelaide, a de alguém que depois daquele gesto emancipador dedicou os dias a bordar cortinas, isso já não me interessava de todo retratar.
Um detalhe da “coreografia” do filme é o recorrente subir e descer de escadas, que pareces filmar com alguma ênfase. Podemos relacionar esse movimento com a própria circulação fácil da protagonista entre a alta sociedade e os ambientes mais pobres?
Não pensei nisso. É daquelas coisas do inconsciente do realizador. Mas há, de facto, um permanente subir e descer social. E essas escadas têm também um lado teatral. Como dizia, estamos sempre perante a representação de qualquer coisa.
A acção do jornalismo em pano de fundo já existia n’O Milagre Segundo Salomé e volta a estar presente da mesma forma neste Ordem Moral. É uma coincidência ou interessas-te por essa “personagem” do jornalismo (não necessariamente do jornalista)?
Bem, uma coincidência sobre a qual me perguntaram entretanto é se já havia covid-19 quando fizemos o filme...
Por causa da sequência que mostra os doentes da gripe espanhola...
Não havia covid-19 quando rodámos, é certo, nem nos passava pela cabeça esta situação, mas são imagens que surgem num momento que talvez nos permita perceber melhor o que era uma pandemia naquela época. Já em relação aos jornais, sempre tive um enorme respeito pelos jornalistas, desde logo tendo crescido num país ditatorial... Eu próprio, antes de fazer a escola de cinema, trabalhei durante uns anos na RFI – Radio France Internationale e, apesar de não ter sido jornalista a sério, é das profissões que mais me fascinam. Daí também que a história da venda do jornal seja algo que me toca. Vejamos, quando o Diário de Notícias é vendido acaba por se tornar uma das bases de apoio do golpe do 28 de Maio [1926] e do Estado Novo que vem a seguir.
E como concilias o trabalho de realizador com o de director de fotografia no filme?
Isso é para mim a coisa mais fácil de gerir. Porque sei perfeitamente aquilo que fazer, como é que vou filmar. Quando chego ao plateau não tenho sequer três minutos de hesitação. Trabalho nos décors com as pessoas dos décors, no guarda-roupa com as pessoas do guarda-roupa (e deixem-me sublinhar que no filme o trabalho da Paula Szabo e da Lucha d’Orey é magnífico), mas quando chego ao plateau sei perfeitamente o que tenho de fazer, o sítio onde colocar os actores de modo a aproveitar o melhor possível a presença e a ausência de luz. O que me facilita sobremaneira o trabalho. No filme utilizei sobretudo a luz natural, à vezes reforçada num ou noutro sítio, mas nunca isso me colocou qualquer dificuldade, já que tinha sempre plena consciência de como fazê-lo. Posso até dizer que há muitos aspectos da mise en scène do filme que são fruto da minha visão de director de fotografia, e de uma certa "eficácia” relacionada com o pouco tempo de que dispomos numa rodagem.
E a música do filme é feita pelo Mário Laginha.
O Mário já tinha trabalhado comigo num documentário. E tinha corrido muito bem. Gosto muito do trabalho dele e nutro por ele uma enorme simpatia. Os meus filmes anteriores tinham música do Bernardo Sassetti, de quem o Mário era amigo e chegaram a trabalhar juntos. Achei que seria a pessoa ideal para fazer a música do filme. E foi.
Ordem Moral surge mais de 10 anos depois do teu filme anterior, Um Amor de Perdição [2008]. Porquê tanto tempo sem realizar?
Respondo-vos indo ao princípio de tudo... no IDHEC (Institut Des Hautes Etudes Cinématographiques), onde me formei, havia duas especializações possíveis: montagem ou imagem. Eu escolhi imagem, e no início havia aquela ideia de sermos um bocadinho feiticeiros com a película, a luz, etc. Fui levado por esse fascínio, entrei num determinado ritmo de trabalho enquanto diretor de fotografia, que era o meu sustento, e só comecei a fazer filmes como realizador quando deixei de ter necessidade de ganhar a vida. Portanto, faço-os por genuíno prazer, sem que haja qualquer disciplina temporal.
E apesar de viveres em França, continuas a filmar em português...
Pensando nisso, é curioso que hoje em dia sonho mais em francês do que em português... Mas adoro o português. E, mais do que o cinema, voltando à questão do encanto do teatro, a minha memória é em português, desde logo, por causa da minha tia Maria Barroso, por quem tinha uma grande admiração. Quando era miúdo queria ser actor de teatro.
Inês N. Lourenço e A. M. C.