Falling - Um Homem Só
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in Programação
5ªF | 21 OUT | IPDJ | 21H30
FALLING - UM HOMEM SÓ, Viggo Mortensen, Reino Unido/Canadá/EUA, 2020, 112', M/14
sinopse, ficha técnica e trailer:aqui
nota crítica
De "O Senhor dos Anéis" aos filmes de David Cronenberg, Viggo Mortensen construiu uma carreira que, agora, se enriquece com a sua estreia como realizador: "Falling" é uma pequena proeza dramática, à moda antiga...
"Falling" pertence, afinal, a uma nobre árvore genealógica de Hollywood em que podemos encontrar os nomes tutelares de Elia Kazan, Sidney Lumet ou Clint Eastwood. Este é um cinema de intransigente paixão pelo carácter irredutível de cada personagem e, nessa medida, atento a todas as suas nuances, mesmo as mais discretas.
João Lopes, rtp.pt/cinemax
conversa com o realizador
Um pai dos diabos
Viggo Mortensen estreia-se na realização com a história de uma fraternidade impossível que traz ecos autobiográficos. É um combate contra preconceitos.
O primeiro filme realizado por Viggo Mortensen, “Falling — Um Homem Só”, foi escrito pelo ator americano depois da morte da sua mãe, estava ele ainda a lidar com o luto e com velhas memórias de infância. Lembrando-se delas, Viggo recordou também o pai e a relação conflituosa que com ele manteve durante longos anos. E pôs-se então a escrever um guião muito mais pessoal do que a ficção que, de facto, se pode ver no ecrã, imaginando uma família em ressonância com a sua. É a história de um pai e de um filho desavindos que resolvem dar uma última oportunidade um ao outro, cada um à sua maneira — e elas não podiam ser mais opostas.
Não foi um passo fácil, Mortensen contou-nos no ano passado, durante o Festival Lumière, em Lyon, que o projeto foi adiado várias vezes por falta de financiamento. E depois veio a pandemia, que comprometeu e muito a vida comercial do projeto acabado: “Falling” havia sido selecionado para a competição de Cannes 2020, esperava-o o mais mediático dos palcos, mas o festival não ocorreu, a estreia foi ficando comprometida — e tanto assim foi que, entre nós, só agora, mais de um ano depois, pode ser visto nas salas.
O pai de “Falling” (notável papel de Lance Henriksen) chama-se Willis e é um velho preconceituoso, conservador, casmurro como uma porta. É um osso duro de roer, encarna o típico velho americano branco, republicano, no limiar da demência, e que se descobre sozinho até que vai visitar o filho John (Viggo) à Califórnia, a pedido deste. O seu passado vai sendo narrado em flashback (Sverrir Gudnason faz de Willis na sua juventude), e por aí se vai sabendo que ele infligiu maus-tratos e infernizou mulher e filhos a vida inteira, é homem carregado de defeitos e, pior do que isso, tem orgulho neles. Mas John, ainda assim, convida-o para uma semana solarenga sonhando com um desfecho apaziguado, quem sabe se a velhice não trouxe ao pai outra calma — mas qual quê, Willis continua igual a si próprio.
E há mais a acrescentar à sinopse: é que o filho é gay, está casado com um havaiano (Terry Chen), têm uma filha hispânica adotada. É tudo aquilo que o pai não queria que ele fosse. Mas John não vai deixar de dar troco ao velho machista obstinado e rezingão que lhe esmagou a infância e a adolescência. É deste conflito que nasce “Falling”, um filme “que eu tinha muita vontade de fazer à minha maneira, com toda a liberdade possível”, contou Viggo em Lyon, “porque também tinha muitas ganas de o ver como espectador”. A mãe que morreu ficou lá para trás, sempre no flashback, como uma memória magoada e ainda muito presente na vida dos dois homens, já o quotidiano faz-se do ódio que Willis destila a torto e a direito, algo que John vai ter de gerir com pinças.
O ETERNO SECUNDÁRIO EM PRIMEIRO PLANO
“Falling” é uma estreia consistente na realização, dá sinais de um ator mais do que firmado que busca agora outros caminhos no cinema. E é um filme generoso, com uma modéstia sincera, aberto à complexidade dos sentimentos, sem virar a cara ao que eles têm de mais violento. Aliás, o próprio Mortensen, embora presente em quase todos os planos, coloca-se voluntariamente em segundo plano sempre que contracena com Lance Henriksen, porque é John quem escuta, quem espera, é ele quem hesita perdoar ou não perdoar (e não é abusivo ver “Falling” como um filme sobre o perdão) à medida que o pai Willis se vai tornando para o espectador uma criatura cada vez mais insuportável, dada a sua intolerância. De facto, Willis é um velho intratável mas o realizador não trata aquele pai como o ‘mau da fita’, não lhe aponta um dedo acusador, prefere antes resgatá-lo desse derradeiro castigo, pondo com isso um termo à sua revolta interior.
Há muito a dizer deste gesto — e aqui entra também a própria presença de Lance Henriksen no ecrã. É provável que o seu rosto não diga muito à audiência, mas o octogenário Henriksen, também ele nova-iorquino de nascimento e de ascendência escandinava (tal como Viggo), é um ‘senhor ator’ secundário com mais de 50 anos de carreira em cima, passou todo este tempo na sombra em muitas dezenas de filmes e de séries de TV, da ficção científica ao thriller e tudo o mais que se possa imaginar, do western (Sam Raimi filmou-o em “The Quick and the Dead”) ao filme de vampiros (pela mão de Kathryn Bigelow em “Near Dark”). Henriksen trabalhou com Sidney Lumet, James Cameron, Steven Spielberg, David Fincher... Conheceu Viggo Mortensen em 2008, na rodagem de “Appaloosa”, filme de Ed Harris. Não deixa por tudo isto de ser comovente encontrá-lo agora a encabeçar o elenco de “Falling”, num papel central que lhe faz inteira justiça. Afinal, o papel que Henriksen nunca teve.
“Ele não foi só a minha primeira escolha...”, contou Viggo depois de sublinhar que teria tido muito menos problemas de financiamento se tivesse optado por um ator mais célebre. “Foi a única escolha. Aliás, se ele não tivesse aceitado, não sei se o filme teria ido para a frente. É um ator extraordinário, contagiou toda a equipa com o seu humor especial, aquela personagem fala pelo corpo dele, pela idade dele, ora pelos seus misteriosos silêncios, ora pelos seus acessos de fúria descontrolada.” Lance foi o “antagonista certo, sempre tenso, era o que eu precisava. E não acredito que qualquer outro ator da geração dele conseguisse fazer melhor”.
Quando a rodagem estava perto do fim, Lance desabafou a Viggo que o pai Willis foi para ele um “milagre”, uma espécie de fusão de todas as personagens que ele tinha feito até então — e são centenas. “Há cenas muito complicadas, com diálogos extensos, exigentes, e nós fomo-nos aparando um ao outro. E ao mesmo tempo eu ia sentindo a personagem dele a crescer dentro dele e dentro do filme, cada vez mais, dos primeiros ensaios até ao fim da rodagem. Aquele pai e aquele filho têm um problema grave de comunicação entre eles. E a história do filme, no fundo, é essa: o relato de uma comunicação quase impossível até ao momento em que eles vão ter de se aceitar um ao outro.”
Há em “Falling” outra aparição, bem mais modesta mas igualmente impagável, pois tem imensa graça e pisca o olho ao percurso de Viggo Mortensen como ator. É a daquele momento em que Willis tem de ir — contrariado, como sempre — a uma consulta de urologia e em que um certo médico se encarrega do necessário exame proctológico, duplo sacrifício para o velho conservador, que não tolera que lhe toquem, muito menos em certas partes do corpo. A cena é muito divertida do princípio ao fim, e ainda mais se torna quando vemos que o médico é interpretado por David Cronenberg, cineasta a quem Viggo deve tanto, por obras como “História de Violência”, “Promessas Perigosas” ou “Um Método Perigoso” (em que Viggo fez de Sigmund Freud).
“Sabe que, das pessoas que têm visto o filme, quase ninguém o reconhece? Passei um bocado a cismar com isto, depois dei-me conta de que, se calhar, ele passa desapercebido porque faz o trabalho [de ator] bem feito. Não lhe pedi que entrasse pela piada cinéfila, não é uma homenagem, nada do género. O David veio-me simplesmente à cabeça pela questão da anatomia, é nele que eu penso quando penso no corpo humano. E ele parece mesmo um cirurgião a sério”.
Francisco Ferreira, Expresso