Em Trânsito / Transit
5 MAR - IPDJ – 21H30
EM TRÂNSITO, Christian Petzold, Alemanha, 2018, 101’, M/12
Sinopse
Transit decorre em Marselha, num imaginário histórico marcado pela ocupação alemã e é baseado no livro homónimo de Anna Seghers, o romance preferido do cineasta onde certos cidadãos do outro lado do Reno, como Georg, precisam de fugir do continente, de barco, para escapar ao regime. Na cidade de Marselha, Georg espera obter um visto e, como tantos outros, espera e vagueia sem propósito. O seu caminho vai cruzar-se com o de um escritor que cometeu suicídio e cuja identidade Georg assume.
CRÍTICAS
A angústia da época. Mas de que época, se também é a nossa?
Em Trânsito adapta uma história passada em Marselha nos anos 40. Mas as ruas são as da Marselha contemporânea, os automóveis são contemporâneos, os uniformes da polícia de choque são os mesmos que vemos na televisão. É essa a aposta: eliminar a distância de segurança do espectador para com os acontecimentos
A mais singular aposta de Em Trânsitotem a ver com o tratamento da cronologia. Se a história (extraída ao romance homónimo de Anna Seghers) trata da situação dos refugiados que em Marselha, em 1940, perante uma Europa cada vez mais ocupada pela bota nazi, aguardavam um barco que os levasse para outras paragens transatlânticas, Petzold evita todas as saliências convencionais da “reconstituição” de época. As ruas são as da Marselha contemporânea (e sobretudo da zona “gentrificada” das antigas áreas portuárias), os automóveis são contemporâneos, os uniformes da polícia de choque são exactamente os mesmos que vemos na televisão, por exemplo em reportagens sobre as manifestações dos “coletes amarelos”.
O efeito desta opção tem incidências narrativas, ou na maneira como o espectador responde à narrativa: eliminado o “cordão sanitário” da identificação histórica precisa e dos códigos do “filme de época”, elimina-se também a distância de segurança do espectador para com os acontecimentos. E assim, paradoxalmente, talvez este seja, entre a produção do “cinema da II Guerra” dos últimos anos, aquele em que sente melhor a angústia do avanço dos invasores, a sensação de cerco. Em vez do cenário da época, a angústia da época. Mas de que época, se também é a nossa? E isso duplica a angústia.
Porque se traça muito eficazmente, por exemplo, a oposição entre a “normalidade” (o bulício das ruas, os rostos dos transeuntes) daqueles que não têm nada de radical a perder com a chegada dos invasores e decorrentes “purificações” (terminologia do filme) e a absoluta excepcionalidade da situação dos refugiados, para quem a obtenção dum visto significa a diferença entre a vida e a morte. Boa parte de Em Transito passa-se assim, numa clandestinidade a céu aberto, com o mar em frente e toda a claridade do verão mediterrânico, mas em permanente “diálogo” com um espaço quase críptico: carruagens de comboios, corredores e apartamentos (Petzold filma muitas portas, em prenúncio de uma citação de Kafka que virá lá para o final), salas de espera de consulados, um pequeno restaurante onde todos se encontram e é quase o Rick’s Café desta história (e onde também, a dada altura, finalmente perceberemos a quem pertence a voz off que conduz e comenta a narrativa, aliás num evidente traço de film noir, género a que Petzold gosta sempre de aludir enquanto elemento “estruturante”).
Vemos também, e muito claramente, o “nosso tempo”, através da história entre o protagonista, o miúdo magrebino e a sua mãe, e sobretudo na última visita de Georg (o protagonista) ao apartamento, os olhares que o fitam (e à câmara, portanto, aos espectadores) são olhares de “agora”. E vemos, entre o principal trio de personagens (uma mulher e dois homens), o romantismo acossado de uma narrativa sobre gente perdida entre o instinto de auto-preservação e o poder redentor, mas sacrificial, do altruísmo e do amor (há nisto, também, qualquer coisa de “languiano”). É por isso que, num golpe de génio, Petzold elide o contracampo para o derradeiro olhar de Georg — ficando um plano “em falta”, nunca saberemos quem veio por ele, se a vida, se a morte. Passamos para o genérico final e para o Road to Nowhere dos Talking Heads, a transformar David Byrneem profeta dos nossos tempos. Luís Miguel Oliveira, Público
Com o seu mais recente filme Christian Petzold continua a afirmar-se como um dos mais distintos autores do cinema europeu contemporâneo. Que o consiga fazer ao mesmo tempo que faz um contundente comentário político e social é admirável. Petzold atreve-se a filmar uma manifestação do impensável, uma Europa de novo em guerra, França novamente ocupada por forças fascistas e a perseguição a minorias como os judeus e os imigrantes. Infelizmente, talvez esta última parte não seja tão inimaginável, e é a partir desse conceito de uma distopia realista, adaptando Transit de Anna Seghers, publicado 1944 e sobre a ocupação nazi, que Petzold cria uma obra de âmbito perfurante. Não é que isso seja algo de novo em Petzold, cujos filmes anteriores revelavam dramas preocupados com um humanismo profundo e personagens em ofuscamento sentimental, mas se, pelo menos nos filmes anteriores como Barbara (Bárbara, 2012) e Phoenix (2014) tudo confluía para um grande gesto final – a decisão na praia no primeiro, a revelação através de uma canção no segundo -, aqui parece jogar-se num campo diferente, mais imediato, onde todos os pequenos gestos ganham particular ressonância emocional.
Os primeiros momentos são de estranheza e incerteza. Pensamos reconhecer a acção, parece algo do passado: uma cidade ocupada, o medo de estar a ser observado, perceber em quem se pode confiar, o perigo de ser apanhado por uma rusga militar a qualquer momento sem os papéis necessários. Por outro lado, o cenário é diferente do que estaríamos à espera: as roupas são contemporâneas, a ambulância que vemos passar ao longe é parecida à que podemos ver hoje nas ruas, tal como os carros e o equipamento da polícia. O filme começa com um encontro entre dois jovens num café, que falam sobre um cerco a Paris e a obtenção de vistos. Um deles diz que vai partir de Marselha para a América, e que pode ajudar o outro, mais desconfiado e prático, se este entregar duas cartas a um hotel. Será o segundo, Georg (interpretado por um soberbo Franz Rogowski), que iremos acompanhar ao longo do filme nas suas tribulações.
Um dos temas centrais de Transit é a questão da identidade. Quem é Georg? Sem qualquer contexto, nunca sabemos realmente – é de notar que a principal alteração em relação ao livro é a mudança de narrador, de Georg para um observador externo, que aumenta o mistério em torno do nosso protagonista. Além de ser um sobrevivente pragmático, de rosto fechado e pouco expressivo, a soma dos seus sucessivos gestos revela alguém que quer parecer duro mas que acaba por tentar ajudar as pessoas à sua volta. Depois de uma viagem clandestina para Marselha, Georg chega à cidade portuária como um anónimo de passagem, sem identidade própria, quase como um fantasma que observa mas em quem ninguém repara (uma referência aos filmes anteriores de Petzold, da trilogia “Gespenster”). Georg acabará por envolver-se em duas linhas narrativas paralelas. Primeiro, visita a casa de um companheiro falecido para dar a triste notícia à sua família, e encontra uma criança e uma mãe na clandestinidade, desamparados. Depois, é momentaneamente confundido com o destinatário das cartas, um escritor desaparecido, pela mulher que espera pela chegada dele, e de seguida, pelas autoridades, que lhe concedem assim um visto para sair do país.
Quando visita de novo a criança, esta está doente, e Georg recorre então à ajuda de um médico alemão, que tal como ele, se encontra à espera para partir. Ambos percebem que encontram-se em situações semelhantes: para partirem de viagem, para conseguirem escapar da guerra, só o conseguem se deixarem alguém para trás – Georg a criança, o médico uma mulher, Marie, essa mulher que o tinha tomado pelo escritor, que o assombra com pequenos clarões do que poderia ser uma outra vida, ela que recusa-se a partir enquanto o seu marido não aparecer. Georg, até aí uma figura em branco, que observava a tragédia à sua volta sem se envolver, acaba então por tentar ser o que desejam que ele seja: uma figura parental para a tal criança órfã, um amigo confidente para o médico, o escritor para as autoridades, alguém que pode ajudar a arranjar um bilhete de partida para a tal mulher. Georg, que se quer solitário e desligado, acaba por apaixonar-se. Porém, há uma única coisa que não consegue ser – o homem por quem espera Marie.
Ainda no início do filme, quando Georg visita o consulado para devolver as cartas e acaba por ser confundido com o escritor, há uma troca de palavras premonitória. O cônsul pergunta a Georg: “quem esquece mais rápido, aquele que é deixado ou o que abandona?” É uma questão repetida mais tarde, por Marie a Georg, acrescentando esta sobre os que são deixados: “eles têm as canções mais doces e tristes. A compaixão fica com eles. Aos que partem, com esses ninguém fica. Esses não têm canções”. Petzold prepara-nos ao longo do filme para o dilema central do filme, muitas vezes repetindo planos que ganham diferentes significados com novo contexto, sobre a escolha impossível entre liberdade e amor, com as diferentes nuances de uma questão complexa. Sem moralismos, sem julgamentos, o filme mostra o lado de quem abandona e de quem é abandonado. É uma ideia central no legado dos filmes anteriores de Petzold: em Barbara (2012), a protagonista prepara uma fuga do exílio, mas vê-se perante a decisão de ceder o seu lugar a alguém necessitado e abandonar a ideia de regresso ao seu amado. Em Phoenix (2014), uma mulher que foi perseguida pelos nazis regressa depois da guerra com uma nova identidade, para ser confrontada com a descoberta da traição do marido, que a abandonou.
É importante notar sobre a adaptação de uma história que decorre em 1944 aos tempos modernos, além da comparação com o desespero dos refugiados e da imigração, que não faltam alguns sinais anacrónicos na ausência de tecnologia como telemóveis ou computadores, e que, numa imensa burocracia, até as velhas máquinas de escrever ganham importância. Se para o espectador é assim difícil situar a acção, esta espécie de desorientação e indefinição temporal ajuda a fortalecer o sentimento de desamparo e deslocamento das personagens, que muitas vezes nem sabem que dia é. Será um dos traços dos tempos vividos no filme: se Sartre escreveu que o inferno são os outros, o julgamento do olhar dos outros, isso aqui dissipa-se para dar lugar a uma espécie de purgatório que eterniza-se, onde os dias repetem-se e onde a passagem do tempo que erode a esperança de salvação é o problema.
Uma sequência sensivelmente a meio do filme reforça essa ideia: uma rusga num hotel acaba com uma mãe a ser separada da sua filha, enquanto Georg e os outros hóspedes observam sem protestar – uma breve troca de olhares, e depois um desviar, dizem muito sobre o que sentem: mais do que o medo, é a vergonha de aceitarem aquilo como normal e de escaparem ilesos desta vez, pelo menos por mais um dia. A certa altura, Georg regressa a um café onde encontrou refúgio para esperar sentado, ainda assombrado pela presença fantasmagórica da mulher por quem se apaixonou. Resta-lhe o tempo, que mesmo que nefasto, afinal é a única coisa que ainda tem. João Araújo, À Pala De Walsh e
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Dossier de Imprensa da Leopardo Filmes