Santiago, Itália
DIA 21 | 21h30 | IPDJ
SANTIAGO, ITÁLIA, Nanni Moretti, Itália/França/Chile, 2018, 80', M/12
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
entrevista ao realizador
Conversa com Nanni Moretti que regressa com Santiago, Itália, um documentário sobre o golpe de estado chileno de 1973 e o apoio que a Itália du aos persegyuidos pelo regime de Pinochet. Em Santiago, Itália Nanni Moretti olha para o golpe de estado que depôs Allende e impôs Pinochet, a partir do papel de porto de abrigo que a Itália, através da sua embaixada em Santiago, desempenhou para muita gente que fugia da perseguição da junta militar. Evocam-se outros tempos, evoca-se a fragilidade da democracia, a memória de uma Itália "mais solidária" — embora essas analogias, como diz Moretti em conversa telefónica com o Ípsilon, fiquem mais a cargo de cada espectador. O que ele não pode, ouvindo vítimas e torturadores, é "ser imparcial". Di-lo no filme, e explica-o nesta conversa.
O documentário de longa-metragem é uma raridade na sua obra, e já não fazia nenhum desde La Cosa (1990), há quase trinta anos. Como se lembrou de abordar esta história neste registo?
Bom, isto foi uma história muito conhecida na altura, e todos acompanhámos o que se passava na embaixada italiana em Santiago no período a seguir ao golpe de estado. Mas entretanto passou tanto tempo que eu próprio já me tinha esquecido. E quando, por altura de uma visita a Santiago, alguém ma lembrou, pensei que era uma bela história, e que se devia fazer um filme sobre ela.
Tem recordações pessoais desse tempo? Tinha vinte anos...
Sim, tinha vinre anos. E ter vinte anos nos anos 1970 era diferente de ter vinte anos agora. Havia uma relação diferente com o mundo, uma curiosidade diferente. E nós, os italianos, de um modo geral, seguimos muito apaixonadamente a situação chilena. Também aqui tínhamos os democratas-cristãos, os comunistas, os socialistas, os católicos de esquerda... em suma, havia muitas analogias entre os dois países. Portanto, foi com muita paixão que acompanhámos a vigência do governo de Allende, e tudo o que foi acontecendo a seguir ao golpe de estado.
Os refugiados chilenos em Itália que o seu filme mostra, conhecia-os? Há ali gente das suas relações pessoais?
De modo geral, não. Só um deles, a quem aliás tinha oferecido um pequeno papel em Habemus Papam — Temos Papa, onde ele desempenhava a personagem de um cardeal sul-americano. É o último que aparece a falar em Santiago, Itália.
É um filme sobre um episódio histórico localizado no tempo, mas naturalmente o espectador vê-o com o pensamento nesta época. E lá para o fim, fala-se com nostalgia de uma Itália mais idealista, mais solidária. Pretendia isto, deixar um comentário à Itália contemporânea a partir do Chile de 70?
Não, não... Eu não escrevi os diálogos do filme, são os deponentes que fazem esses comentários. Mas claro, isso é certo: a partir daí, vendo-se o filme, cria-se uma imagem de contraste ou de confronto entre a Itália de 70 e a Itália de agora. Mas não era o meu programa nem tinha um desejo demonstrativo. Não, eu queria apenas contar esta história. Se o espectador for levado a pensar nessas comparações, muito bem. Mas não se trata de algo que a priori estivesse inscrito nas minhas intenções.
Não escreveu os diálogos, mas escolheu-os, montou-os...
Certo, claro. Mas a minha motivação para fazer um documentário nunca é a vontade de demonstrar nada. Faço um documentário porque estou o curioso com qualquer coisa. Quando fiz La Cosa foi porque estava realmente curioso com o debate que estava a acontecer no Partido Comunista Italiano, e porque queria saber mais sobre ele. Não pretendo ter um programa para o aprersentar ao espectador. Construo o documentário a partir daquilo que eu próprio vou descobrindo, sem argumento prévio.
Em todo o caso, um dos pontos criciais do filme anda à volta da fragilidade da democracia, de como tudo pode acabar de um momento para o outro.
Bom, há muitas diferenças entre a Europa de hoje e o Chile daquela época. Havia muitos factores em jogo, até externos, como a interferência americana, e um contexto muito específico, nomeadamente uma situação de crise económica. Portanto, não creio que se possa fazer uma analogia automática entre as duas situações. Não era, pelo menos, a intenção.
No filme, ouvimos de vez em quando a sua voz em "off' mas não o vemos muitas vezes em campo. O momento mais significativo é o daquele diálogo com o militar na prisão, quando ele se queixa de que pensava estar num filme "imparcial", e você responde: "Eu não sou imparcial". É um dos momentos mais fortes do filme, e aquele está mais próximo dum "happening"...
Sim, é um general que foi condenado, e está preso, pelas atrocidades cometidas pela juntar militar de Pinochet. Sabe, eu não sou capaz de teorizar sobre os meus filmes. Portanto, não sei por que razão, mas senti que o meu filme tinha que ter a voz dos outros, dos "maus". E assim, insisti muito com a produção para ter também entrevistas com ex-militares. Foi o que aconteceu. Mas é impossível ser imparcial, equidistante, entre as vítimas e os perpetradores. É impossível, nunca serei imparcial tendo os torturadores num lado e as vítimas noutro.
Os militares falam de forma bastante desassombrada, quase cândida, sobre os seus actos. Como é que se relacionou com eles?
Bom, eles tinham uma grande necessidade de justificar as suas acções, e eu tinha uma grande curiosidade por ouvir as suas justificações. O que mais me impressionou foi a total ausência de arrependimento perante as consequências do que fizeram. O que acaba ser um reflexo do que o Chile ainda é actualmente: um país partido em dois. Há uma parte do país que continua a justificar a ditadura, ou pelo menos a justificar as razões da sua instituição. É uma ferida que ainda está aberta na sociedade chilena.
Há alguns momentos em que os ex-refugiados deponentes se comovem a evocar os tempos da militância e do combate político vivido como causa primordial. Quase como nostalgia de um mundo desaparecido. É uma nostalgia que partilha?
Não, não... Isso é como perguntar-me se eu tenho saudades dos meus vinte anos. Não tenho saudades nenhumas de ter vinte anos. Saudades dos meus cinquenta anos, sim, isso tenho muitas [e ri-se].
Luís Miguel Oliveira, Público
crítica
Santiago, Itália. O olhar não isento de Moretti sobre o golpe chileno
O golpe de Estado que derrubou o regime de Salvador Allende aconteceu a 11 de setembro de 1973. A assinalar a data, estreia o documentário de Nanni Moretti, Santiago, Itália: vozes de quem fugiu da ditadura de Pinochet para uma pátria "materna", de braços abertos.
Cineasta que nos habituou a uma marcada atitude política, o nome do italiano Nanni Moretti antecipa alguma informalidade. Vem logo à memória Palombella Rossa (1989) e a sua metáfora aquática da então conjuntura do Partido Comunista Italiano, ou o "diz qualquer coisa de esquerda", que ele pronuncia enquanto assiste a um debate televisivo entre Berlusconi e o socialista Massimo d"Alema, no filme Abril (1998). O que esperar deste Santiago, Itália? Tudo menos isenção.
Antes de mais, a pergunta deve ser: porquê um documentário sobre o golpe de Estado chileno? Moretti não é homem de se meter num projeto por mero desígnio pedagógico. E a prova disso é que Santiago, Itália - como o título sugere - tem um caminho a fazer, não apenas geográfico mas de relação com a atualidade. Entenda-se: sondar os eventos dos anos 1970, no Chile, significa chegar à importante ação de acolhimento que a Embaixada de Itália teve, na altura, para com os refugiados políticos. Um elogio que se impõe ser feito em plena era da política anti-imigração do governo italiano. Eis o "golpe" cívico de Moretti.
Com um vasto painel de entrevistados, entre os quais os realizadores chilenos Patricio Guzmán (Nostalgia da Luz) e Miguel Littín (Actas de Marusia) - cujas filmografias estão intimamente ligadas à história política do país -, o documentário segue os relatos da alegria gerada pela eleição de Salvador Allende e a subsequente queda trágica do regime democrático, com a atmosfera que se gerou e os ataques àqueles que advogavam ideias de igualdade e liberdade, num genuíno espírito coletivo. As histórias pessoais de tortura misturam-se com uma visão mais abrangente dos acontecimentos, e então chega-se ao essencial: o modo como estes opositores das forças de Pinochet foram recebidos na Embaixada italiana num ambiente de solidariedade e confraternização. Encontraram no asilo uma nova esperança.
Intercalando os depoimentos com algumas imagens documentais, é sobretudo desse fluxo de palavras ("as palavras são importantes", já gritava Moretti em Palombella Rossa) e, por vezes, de silêncios comovidos, que se faz Santiago, Itália. Um documentário que começa por dar uma falsa sensação de abordagem convencional para afinal se revelar no percurso e nos detalhes. Veja-se, por exemplo, a maneira como Moretti capta a "personagem" que existe num ser humano: uma mulher, com jeitos de diva, que relata o seu caso de tortura como quem está a falar de manicura... Essa não formatação da vítima, essa atenção ao diverso, é também uma qualidade de quem sabe observar o outro. Porém, é ainda noutra particularidade que a índole do cineasta se estabelece. Dando voz a dois militares, isoladamente, para ter também o seu ponto de vista nesta recolha, a certa altura, um deles indigna-se com as perguntas e diz que tinha sido convocado para uma entrevista imparcial. Ao que Moretti, na sua assertividade refrescante à frente da câmara (na única vez que o faz), responde: "Eu não sou imparcial".
Este é também o desafio que se lança ao espectador, medir o grau de (im)parcialidade para com o que acontece à sua volta. E a beleza de uma tomada de posição é quanto basta para tornar Santiago, Itália um documento pleno de fraternidade, contra o veneno das sociedades individualistas.
Inês N. Lourenço, dn