A Vida Invisível
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
25 JUN | Esplanada IPDJ | 22H00
A Vida Invisível, Karim Aïnouz, Brasil/Alemanha, 2019, 139', M/16
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
críticas
O Brasil dos maus costumes no filme “A Vida Invisível”
Um poderoso melodrama, retrato da condição feminina num Brasil moralista dos anos 50, cada vez mais próximo da atualidade [...]
Há desencontros que duram uma vida inteira. O realizador Karim Aïnouz revela um talento raro para o melodrama que há quem julgasse estar apenas ao alcance dos melhores autores anglo-saxónicos. Se em Mulherzinhas, a premiada adaptação do livro de Louisa May Alcott, por Greta Gerwig, paira uma enorme nuvem de nostalgia, em A Vida Invisível, adaptação de um romance de Martha Batalha, entramos profundamente na melancolia. O filme tem a dimensão e a estrutura de uma saga e lança diferentes pontos de reflexão sobre o Brasil moralista e retrógrado dos anos 40/50, com óbvias repercussões na atualidade.
Na base, uma família, próxima do ambiente sugerido pela telenovela Imigrantes. Os pais portugueses – ele padeiro, ela doméstica –, as duas filhas já nascidas no Brasil e, de alguma forma, tentadas pelo glamour cosmopolita do Rio de Janeiro. Guida, a irmã mais velha, segue pelo risco e foge com um marinheiro grego – apaixonando-se mais pela ideia de fuga do que pelo próprio marinheiro. Eurídice escolhe um caminho mais seguro, com um casamento aprovado pelos pais, mas alimenta, ainda assim, o sonho de ir estudar piano para Viena.
Em ambos os percursos, as expectativas são goradas, não por incapacidade própria, mas pelos obstáculos levantados por uma sociedade machista, implacável perante os desejos e sonhos de autonomia das mulheres. Afinal, A Vida Invisível é, na sua essência, um enorme filme sobre a condição feminina no Brasil dos anos 50, tão bem resumida na deixa de uma das personagens, que fala do azar de nascer mulher. É essa louca deriva machista, de preconceito e discriminação – primeiro do lado do pai, depois do lado do marido e, finalmente, da sociedade no seu todo – que provoca a angústia de um desencontro quase eterno entre as duas irmãs. É, pois, também um filme sobre a saudade, uma saudade profunda, talvez mais dura do que a própria morte.
Karim Aïnouz é hábil na gestão do enredo, ousado na linguagem estética e na abordagem despreconceituosa (até inclui uma ereção masculina em primeiro plano), e conta com ótimos atores, como Gregório Duvivier, num inesperado papel dramático, e Fernanda Montenegro.
Manuel Halpern, visão
Saímos de “A Vida Invisível” com um nó no estômago e um fado de Amália. O filme brasileiro que Cannes premiou.
Duas irmãs brasileiras dos anos 50, descendentes de portugueses, são separadas por preconceitos e caprichos num grande fresco sentimental de Karim Aïnouz.
Karim Aïnouz (n. Fortaleza, 1966) é um dos cineastas brasileiros mais consistentes destas últimas duas décadas e a sua obra tem crescido passo a passo, feita de personagens frequentemente desalinhadas das normas sociais, contra a corrente, desde a estreia com “Madame Satã”. Mas ninguém previa que a sua sétima longa-metragem se atirasse desta forma para um fresco sentimental com natureza de folhetim. “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” (título original) venceu a secção Un Certain Regard, do último Festival de Cannes. É uma adaptação saborosamente infiel do romance homónimo de Martha Batalha. Passa-se em 1951, no Rio de Janeiro, em torno de Eurídice e Guida, duas irmãs inseparáveis, de 18 e 20 anos, descendentes de imigrantes portugueses. E elas têm sonhos distintos: Eurídice, a mais reservada, sonha com o Conservatório de Viena e uma carreira de pianista; Guida, mais afoita, procura um grande amor e, sem dar cavaco à família, tomba nos braços de um marinheiro grego que a leva de barco para Atenas antes de ela descobrir que ele é só um canalha. Guida acaba por regressar meses depois, sozinha e de barriga, enfrentando o pai e o seu veredicto severo: “Fugiste pelas traseiras, desaparece pelas traseiras.” O verdadeiro núcleo do filme começa aqui, porque Eurídice, entretanto, fez bom casamento — mas o pai não vai permitir que as duas irmãs voltem a ver-se. Um retrato de submissão da condição feminina — e de toda uma geração de mulheres — começa então a ganhar corpo. Também há muitas cartas em “A Vida Invisível”. Guida concluirá por elas que “família não é sangue, é amor”. Antes que mais se avance, diga-se ainda que o melhor trabalho de Aïnouz até à data é também um triunfo de interpretações: Eurídice e Guida estão no corpo das excelentes Julia Stockler e Carol Duarte; António Fonseca e Flávia Gusmão são os pais portugueses num lote de secundários do mesmo nível; e ainda temos creditada no genérico a extraordinária Fernanda Montenegro, que tarda a aparecer no ecrã — mas quando aparece devora tudo à sua volta.
Karim Aïnouz refere-se a “A Vida Invisível” como um projeto “calcado de uma obra literária” mas muito pessoal “porque a história de Eurídice e de Guida podia ter sido a história da minha mãe e das minhas tias. Perdi a minha mãe em 2005. A vida dela não foi fácil. Dei-me conta de que a sua história, bem como a história de tantas mulheres da sua geração, jamais nos foi contada. A palavra ‘invisível’ do título vem daí”, contou-nos o cineasta em conversa telefónica. “Então, contaminei as personagens do livro com figuras de pessoas que conheci profundamente. A minha mãe, se fosse viva, teria 91 anos — que é precisamente a idade que a Fernanda Montenegro tem hoje...” Já a natureza epistolar do filme é uma ousadia que não vem do livro e que Karim reclama por inteiro. Uma textura narrativa pela qual o cineasta se interessa desde sempre. “Eu saí de casa muito novo, a minha mãe me escrevia bastante, fui crescendo habituado a essa forma de narrativa. Que me permite aproveitar uma experiência muito bonita da literatura que é o roman à clef, em que a gente tem a oportunidade de retratar eventos e experiências autobiográficas sem se expor. Esta atração pelo relato do diário está presente em quase todos os meus filmes. Permite-me aceder ao mundo interior das personagens. E permite-me atravessar o tempo.”
Francisco Ferreira, Expresso