No Verão Passado
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 7 DEZ | | IPDJ | 21H30
NO VERÃO PASSADO
Catherine Breillat, NO/FR, 2023, 104’, M/14
ficha técnica, sinopse e trailer: aqui
notas críticas
NO VERÃO PASSADO transpõe perigosamente as fronteiras entre o drama perturbador, a comédia de humor negro e a exploração erótica. The Hollywood Reporter
Catherine Breillat afirma-se como uma das realizadoras mais talentosas do nosso tempo e fá-lo com uma suavidade subversiva. The Film Stage
Catherine Breillat mergulha com calma e maestria nas vertigens, mentiras, contradições e manipulações de um incendiário amor proibido. Cineuropa
No Verão Passado é a história de uma paixão assombrada que escapa a qualquer lei social ou narrativa (...) Léa Drucker é uma actriz espantosa, por certo uma das mais talentosas e versáteis do actual cinema francês. (...) Samuel Kircher é impressionante no modo como nos oferece um Théo visceralmente trágico. Diário de Notícias
entrevista com Catherine Breillat
Na origem de NO VERÃO PASSADO, há um filme dinamarquês, RAINHA DE COPAS (QUEEN OF EARTS). De onde surgiu a vontade de fazer um remake?
Foi uma ideia do Saïd Ben Saïd. Ele mandou-me um recado, lembrando-me que nos tínhamos conhecido no festival de Belfort três anos antes e dizendo-me que tinha acabado de adquirir os direitos do remake de um filme dinamarquês e que achava que eu seria capaz de fazer um filme melhor do que o original! Naquela altura, eu estava muito em baixo. Não queria continuar a fazer filmes. Acho que também estava com uma depressão latente, ainda hoje estou em péssimas condições físicas. Ser hemiplégico não é fácil. Vi o filme e fiquei estupefacta com a mentira que nele é contada. Para dizer uma mentira tão grande e levar o outro a acreditar, é preciso acreditar de alguma forma naverdade da mentira! Achei absolutamente brilhante, do ponto de vista do recurso argumentativo, digno de um Shakespeare.
O seu filme é muito diferente do original, que conta o adultério de uma burguesa, que tem um caracter quase predatório. Em NO VERÃO PASSADO, a Catherine filma a pureza do desejo e dos sentimentos.
No papel, contava-se efectivamente a história de um adultério com um enteado muito jovem, etc. Mas não foi isso que eu quis contar. Não gosto do cinema realista, quando se limita a dizer coisas convencionais, limitadas, moralistas. A arte moralista torna as pessoas mais feias e reduzidas. Mas a Arte é moral porque as embeleza, lança sobre elas um olhar que as abre, as transfigura. Ao contrário daquilo que pensam de mim, sou super romântica! Tenho uma obsessão pela pureza, daí não suportar o adjectivo «sulfurosa» quando se referem a mim. Nem gosto que digam que faço cinema erótico. Eu odeio o erotismo! O erotismo é o modo como os homens vêem as mulheres enquanto objecto de consumo. Nunca coloquei o menor erotismo nos meus filmes. Há certamente aspereza e sexualidade, porque sempre me questionei sobre a minha identidade sexual. Mas os meus filmes são, acima de tudo, poéticos. O que me interessa é o desejo, o amor, a pulsão amorosa, a culpa… Enfim, tudo aquilo que nos escapa, tudo o que é da ordem do não-dito a que eu chamo o nosso «lugar comum».
No início da história, tudo separa Anne e Théo, que ainda é um pouco imaturo, principalmente quando brinca com as irmãzinhas...
Theo sente-se muito mal no mundo adulto. E, para ele, no início, Anne é tão monstruosa como os outros adultos. E depois vem aquela cena crucial, em que ela lhe leva o porta-chaves. Naquele momento, ainda não o vemos enquanto amante potencial. Ele ainda tem bochechas de criança, não é propriamente bonito, porta-se como um adolescente arrogante. Apesar de tudo, ela estende-lhe a mão, algo que ele não esperava, e é aqui que o filme começa realmente: ele levanta os olhos para ela, olha-a de forma diferente, parece descobri-la, ganhando ao mesmo tempo, ele mesmo, outra dimensão. Os seus rostos mudam de ordem e temporalidade, como a chegada de Eli Wallach em BABY DOLL de Elia Kazan. Ao fazer esse pacto com Theo, Anne assina a sua «desgraça», sem que se aperceba disso. Obscuramente, ela está em completa negação. Ela só quer ser generosa com o rapazinho.
O seu encontro repentino sublima-os. O filme acredita no poder da metamorfose do desejo e do amor nos seres.
Sim, e sempre acreditei nisso. Mesmo nos meus primeiros filmes, mesmo em SALE COMME UN ANGE e em 36 FILLETTES, onde os homens são machos horríveis, há uma redenção que passa pelo amor e pelo facto de alguém se apaixonar. Acredito no amor, na transformação e na transfiguração pelo amor. E entreguei-me com toda a minha alma a este filme. A partir do momento em que Anne e Theo se entregam ao desejo, a presença dele rejuvenesce-a, ilumina-a, dá-lhe graça. Ela revive a adolescência que não teve, dado que a sua adolescência, adivinhamos, foi pulverizada. E é essa luz entre eles que leva os espectadores a perceber que eles se apaixonaram.
Anne e Théo são amiúde filmados de muito perto, como que numa bolha da qual foi banido o ambiente social.
Sim, porque quando duas pessoas se comem com os olhos e bebem as palavras uma da outra, elas estão sozinhas no mundo. Pode haver um barulho ensurdecedor, elas não ouvem mais nada. Eu mostrei ao Samuel o IVAN, O TERRÍVEL com aqueles olhares «deslizantes». No filme, o Samuel quase ficou vesgo de tanto olhar para a Léa pelo canto do olho. Acabei por perceber que eu era uma cineasta de emoções. E as emoções são os rostos nus, dos quais sigo o menor olhar que se esvai, que brilha… Sou mirone e vidente. Gosto de ver a alma humana nos seus mínimos sobressaltos, acho a sua ambiguidade de uma beleza absoluta.
Coexistem duas temporalidades no filme: o tempo familiar, social, algo naturalista, e os momentos atemporais em que eles se encontram a sós.
Gosto do cinema naturalista, mas acho que tem que ser esmagado pelo expressionismo, porque na sensação de “jogar limpo” não há a tensão daquilo que quero contar. Eu conto emoções, não conto o dia a dia. Isso decorre também do filme que vi quando tinha doze anos, que foi a revelação e me levou a querer ser cineasta: LA NUIT DES FORAINS de Bergman, confirmado por A MÁSCARA. Depois, penso em Hitchcock, sempre, com aquelas mulheres enigmáticas e, obviamente, nos pintores. Eu posiciono os meus actores no fotograma, à semelhança do que os pintores fazem nos seus quadros, em que fazem estudos intermináveis para posicionar uma cabeça, um braço ou um olhar de soslaio, com uma precisão absolutamente artificial, mas ao mesmo tempo natural. É preciso lutar contra o naturalismo para trazer as emoções para o quadro. Em ROMANCE, pensei na transparência de Georges de La Tour. Em BARBE BLEUE, em Cranach... E em NO VERÃO PASSADO, em Caravaggio. Ele ajudou-me muito, principalmente na cena de amor…
Porquê Caravaggio?
Houve um sismo no mundo artístico quando Caravaggio pintou Maria Madalena em êxtase. Ter ousado colocar a sensualidade e a carne em êxtase divino... O sexo é um desafio de poder, contra o qual as religiões lutam porque, justamente, compete com a religião. Geralmente, quer se reduzir a carne a prazeres lascivos, às vezes, algo encantadores, mas, ainda assim, sempre triviais. Eu quero filmar esse êxtase divino, quando alcançamos o corpo transparente.