Girls Will Be Girls
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 26 JUN | IPDJ | 21h30
GIRLS WILL BE GIRLS
Shuchi Talati, IN/FR, 2024, 118’, M/14
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
nota da realizadora
Girls Will Be Girls passa-se num internato conservador, muito semelhante à escola onde estudei, onde as raparigas são vigiadas sob o pretexto de proteger a sua “virtude”. A sexualidade masculina pode expressar-se livremente, por vezes até através de agressões contra raparigas, enquanto nós somos ensinadas a ser submissas e a sentir vergonha dos nossos corpos.
Apesar disso, sempre estive rodeada de raparigas e mulheres ferozes e irreverentes, que encontravam formas de contornar e subverter os códigos sociais e morais.
Em Girls Will Be Girls, quis escrever sobre estas mulheres subversivas que fizeram parte da minha vida, mas que nunca vi representadas nos ecrãs, e expandir as narrativas disponíveis para as mulheres indianas.
Os filmes da Índia (e do Ocidente) frequentemente apagam os corpos femininos reais. Os seios e as nádegas são hipersexualizados, mas a masturbação, menstruação, vaginas, etc, são tratados com repulsa ou constrangimento. Este apagamento faz parte da forma como as raparigas são treinadas para serem invisíveis num mundo que tem medo da sua sexualidade, identidade e voz. Mas Mira (16 anos) e a sua mãe Anila (38 anos) são seres encarnados com secreções e desejos. Mira examina a sua vagina num espelho, masturba-se esfregando-se contra um ursinho de peluche e planeia a sua primeira relação sexual. Anila evita os papéis abnegados e assexuados a que as mães são relegadas. Ela inveja a juventude e o namorado da filha e persegue os seus desejos com fervor. Tanto a mãe como a filha são personagens subversivas e expansivas que emergem desafiantes, se não necessariamente triunfantes. O filme passa-se no final dos anos 90, quando a economia indiana se abriu às exportações ocidentais. Isso gerou intensas guerras culturais entre a “depravação ocidental” e a “virtude indiana”. Os corpos das mulheres tornaram-se campos de batalha nessa disputa, e mulheres de mini-saia ou com agência sexual passaram a ser vistas como símbolos de corrupção. Infelizmente, esta realidade continua assustadoramente actual em muitas partes do mundo.
Embora o filme esteja enraizado na Índia dos anos 90 e seja uma observação minuciosa sobre género, sexualidade e o patriarcado opressivo, não me interessa apresentar uma grande tese nem pregar sobre questões sociais. Para mim, é essencial que Mira e Anila não sejam definidas apenas pela sua identidade como mulheres indianas e que não tenham de representar toda a sua comunidade. Quero permitir-lhes a plenitude da sua humanidade – que se possam apaixonar, desiludir, sentir inveja e luto, e existirem apenas como elas mesmas, sem a necessidade de encarnar uma cultura inteira.
Porque é assim que as suas histórias também se tornam universais – um privilégio que, na maioria das vezes, é reservado às personagens das culturas dominantes.
imprensa
Um retrato arrebatador de vulnerabilidade adolescente – e adulta. - Indiewire (Proma Khosla) ★★★★★
Girls Will Be Girls é um drama que se desenha em olhares intensos e conexões subtis.- The Guardian (Wendy Ide) ★★★★
Girls Will Be Girls é um documento profundamente comovente sobre a vivência feminina geracional.- RogerEbert.com (Peyton Robinson) ★★★★
A montagem [de Amrita David] é acompanhada por uma profundidade de campo e uma luz interior dignas de Vermeer. - Positif (Eithne O'Neill) ★★★★
Duas actuações que destacam uma encenação original e imparcial, resultando num filme muito belo que nos põe a reflectir.- Le Parisien (Renaud Baronian) ★★★★
Uma primeira obra ousada da realizadora Shuchi Talati.- Télérama (Louis Guichard) ★★★★
A forma como Girls Will Be Girls apresenta a sexualidade feminina na adolescência — com sensibilidade, sensualidade e irreverência — é praticamente revolucionária no contexto maisamplo do cinema indiano.- Variety (Siddhant Adlakha)
O filme de Talati apresenta uma abordagem sensível e distinta sobre as dinâmicas complexas entre mães e filhas.- Hollywood Reporter (Lovia Gyarkye)
Os sentimentos delicados e a realização subtil combinam para criar um conto de empoderamento feminino.- ScreenDaily (Allan Hunter)
Um retrato intimista de como a opressão de género é vivida de forma geracional, de uma mãe para a sua única filha.- Vogue (Shahamat Uddin)
entrevista com a realizadora (por Hannah McGill)
Como decidiu que se queria tornar cineasta?
Aconteceu por acaso. Cresci numa pequena cidade na Índia, chamada Baroda. Lá, éramos todos orientados para profissões mais estáveis. Sempre fui uma boa aluna e achava que me iria tornar médica, como o meu pai – temos muitos médicos na família. Nunca me ocorreu que poderia fazer outra coisa! Os alunos inteligentes seguem medicina ou engenharia.
A certa altura, um amigo perguntou-me: “O que é que tu gostas realmente de fazer? Nunca pensaste nisso!”. E eu respondi: “Já pensei! Não quero engenharia, por isso vou seguir medicina!”. E ele disse: “Meu Deus, há um mundo inteiro lá fora.” Aquilo deixou-me completamente atónita. E então pensei: “Bem ... o que eu gosto mesmo é de histórias!” Eu tinha sempre um livro comigo – debaixo da mesa, até mesmo quando caminhava de uma aula para outra. Por isso, fui estudar Literatura Inglesa. Tive um professor que organizou um programa opcional de cinema. O filme que mais me marcou desse curso foi Três Cores: Vermelho (1994), de [Krzysztof] Kieślowski ... e lembro-me de pensar: “Espera lá, o cinema pode fazer o que os livros fazem por mim!”
É interessante que tenha sentido que apenas certos papéis estavam disponíveis para si, enquanto outros eram desencorajados ou até proibidos, porque isso é uma temática muito forte em Girls Will Be Girls.
Sem dúvida. Em muitas culturas, e certamente na Índia, há papéis claramente definidos. Isso pode trazer algum conforto, mas também um certo aprisionamento. Para raparigas e mulheres, há um número muito maior de regras impostas – e punições muito mais severas se saírem da linha. Essa foi a semente do que quis explorar com a Mira e a Anila, a filha e a mãe.
Ambas tentam desafiar aquilo que lhes é permitido.
A Mira é suposto ser a "boa menina", a que segue as regras, mas está a explorar outra identidade ao envolver-se com este rapaz. E a mãe também. Muitas jovens mães são relegadas para um papel assexuado, de suporte, e acabam por perguntar: "E eu? O que acontece comigo?" Conheci mulheres que transgrediam de várias formas, mas muitas vezes essas histórias não são contadas.
Frequentar a escola de cinema ajudou-a a encontrar o seu papel e o seu estilo como cineasta? Ou mostrou-lhe aquilo que não queria fazer?
Fui para o AFI [American Film Institute] quando tinha 24 anos. Foi uma grande mudança, de Índia para Los Angeles, e muitos dos meus colegas eram mais velhos. Acho que isso mudou entretanto, mas na altura não havia muitas mulheres na turma. E senti que havia um certo tipo de narrativa que era priorizado ou celebrado.
Depois de fazer uma história mais silenciosa, centrada nas personagens, experimentei terror e fantasia negra, pensando: “Tenho de ser mais ambiciosa!” Por isso, saí da escola de cinema um pouco perdida. Depois fiz um filme em que pensei: “Vou fazê-lo só para mim. Não me importa se alguém o vê ou não.” Chama-se Mae and Ash (2012) e é sobre um casal jovem a navegar uma relação aberta. E ao retirar essa pressão e simplesmente explorar por mim própria, encontrei aquilo que realmente queria fazer. O que me interessa verdadeiramente são as dinâmicas de poder entre géneros nas relações. Isso devolveu-me alguma confiança ... mas foi um processo de recuperação que levou vários anos!
Os seus filmes curtos abordam temas bastante tabu – relações abertas, menstruação. Isso exigiu coragem?
Na verdade, nem pensei nisso quando fiz o filme sobre a relação aberta, porque estava a fazê-lo apenas para mim. E depois acabou por correr bem.
Tive mais dúvidas quando fiz A Period Piece (2020). Também estava a escolher actores sulasiáticos, por isso senti o filme mais próximo da minha realidade. Queria ver pessoas que se parecessem comigo retratadas como seres sexuais, algo que nem sempre nos é permitido no ecrã. Mas o processo de casting foi muito difícil. Muitas pessoas disseram: “Gosto do argumento, mas desculpa, não posso fazer isto.”Preocupei-me com a forma como as pessoas o iriam ver? Sim. Mas acho que há algo no acto de fazer filmes – talvez a distância que ele proporciona – que nos torna mais corajosos.
Até que ponto a sua experiência com curtas-metragens a ajudou quando chegou a altura de fazer uma longa-metragem?
Nas curtas-metragens, descobri como gosto de trabalhar com actores. E ganhei confiança a dirigir cenas íntimas, garantindo que toda a gente se sente bem com o que estamos a fazer. Sou uma pessoa muito organizada, gosto de folhas de cálculo, mas não se pode preparar uma longa-metragem da mesma forma que se prepara uma curta! Quando filmamos uma curta durante quatro dias, conseguimos realmente ter tudo sob controlo em cada um desses dias. Mas, numa longa-metragem, cada dia é um caos! Não posso aprovar antecipadamente todos os adereços, cada figurante, o que as pessoas no fundo da cena estão a vestir. São sempre surpresas no dia. Todas essas decisões a tomar e aspectos a avaliar – isso foi, sem dúvida, um desafio.
Fazer uma longa-metragem sempre foi o seu objectivo?
Esta história esteve a martelar na minha cabeça durante anos. Mas a transição de uma curta - que pode ser autofinanciada ou financiada com a ajuda de amigos e família – para uma longa-metragem parece um processo muito nebuloso. Como é que se chega lá? Mas é preciso dar um passo, e depois começam a surgir mais dois à frente.
A certa altura, comecei a escrever. Passei por várias versões iniciais, em que o triângulo era entre Mira, o namorado e uma professora, até perceber que, na verdade, era uma história sobre Mira, a mãe e o namorado. Depois, juntaram-se produtores e o projecto tornou-se mais real. Só nos últimos dois anos é que senti finalmente: “Ok, há um caminho para isto acontecer.”
Escrevi muitas versões. E, como a história esteve comigo durante tantos anos, sinto que amadureceu comigo. No final do processo de escrita, tinha muito mais compaixão por todas as personagens.
Frequentou uma escola deste tipo?
Não fui para um internato – sempre foi apenas um fascínio meu. Mas andei numa escola do mesmo tipo, com regras rígidas, tal como esta, e conhecia muitas escolas assim.
Então, a atenção dada ao desempenho académico da Mira e ao seu carácter moral percebido é algo com que estava familiarizada.
Muito familiarizada! Sabia exactamente como jogar esse jogo – e fui excelente nisso!
Como encontrou a rapariga certa para interpretar Mira?
Trabalhámos com o Dilip Shankar, que fez o casting de Casamento Debaixo de Chuva (2001) e A Vida de Pi (2012). Disse-lhe que não começo com uma imagem da personagem – ou, se o faço, tento não me apegar demasiado a ela. O mais importante é a essência da pessoa. Sabíamos que queríamos fazer uma pesquisa abrangente para encontrar a Mira. Há muitos jovens actores na Índia com experiência, por isso fizemos audições com vários deles. Também lançámos um casting aberto em várias cidades e universidades.
Com muitos actores treinados, eles acertavam em todos os momentos certos, mas faltava aquela vivacidade que eu procurava. Quando a Preeti fez a audição num casting aberto, a cena era a de astronomia – a primeira vez que o Sri e a Mira se encontram e conversam. Muitas raparigas interpretaram a cena de forma tímida e recatada. Mas o que me impressionou na Preeti foi a força com que a interpretou. Ela gostava daquele rapaz, mas tinha muito amor próprio e não ia simplesmente piscar os olhos e fazer-se de desentendida. Senti imediatamente que ela era a Mira. Além disso, é uma actriz incrivelmente inteligente, que compreendeu a personagem de forma intuitiva. Partilha algumas características com a Mira – chegava sempre com o seu caderno e tomava notas. E é preciso coragem para uma jovem aceitar um papel como este, ter aquela conversa com os pais e dizer: “Vou fazer este filme.” Tenho uma enorme admiração por ela.
A ambiguidade em torno de saber se a relação com o Sri é boa ou má para a Mira é muito interessante. Quis que o público se sentisse dividido?
Com a relação romântica, queria que o público fizesse a mesma jornada que a Mira. Aqui está este rapaz, que viu mais do mundo do que ela, que lhe pode abrir novas formas de pensar e com quem pode explorar a sua sexualidade de forma segura. Quero que o público sinta essa sedução e esse encanto.
Ele preocupa-se com ela, com a mãe dela, e encontra nesta casa um refúgio, algo muito diferente do seu próprio lar. E, no entanto, quando ele usa o seu charme para conseguir coisas, para conquistar as pessoas ... há ali algo que não está certo, percebe?
E sinto-me muito orgulhosa da Mira por perceber isso. Porque eu própria já namorei com homens assim e demorei anos a ver o que estava errado.
Mencionou a filmagem de cenas íntimas. Actualmente, esse é um tema de grande sensibilidade. Como lidou com isso, especialmente tendo actores tão jovens?
Os actores leram o argumento no início do processo de casting. Durante a segunda ronda de audições, perguntei-lhes se tinham dúvidas. A maioria dos actores chegou com perguntas sobre as cenas de intimidade. Mas o Kesav e a Preeti trouxeram perguntas sobre as personagens.
Antes de os escolhermos, disse-lhes: “Ainda não me perguntaram nada sobre as cenas íntimas.” E, de formas diferentes, ambos responderam: “Acho que isto é realmente importante para a história.”
A Preeti disse: “Acho que é importante que estas histórias sejam contadas; falar sobre isto com a minha irmã e com a minha mãe já fez surgir conversas que nunca teria tido na minha família. Quero que toda a gente tenha essas conversas, por isso quero fazer este filme.”
Quando chegámos aos ensaios, o foco foi dar-lhes liberdade. Disse-lhes: “Podem sentir alguma coisa, e isso pode ser desconfortável; podem não sentir nada, e isso também pode ser desconfortável… o que for que sintam, está tudo bem.”
Tirámos fotografias dos enquadramentos e perguntávamos: “Isto parece-vos bem?” Houve um momento em que tínhamos preparado um plano aberto e um dos actores não se sentiu confortável, por isso ajustámos a composição da cena. O objectivo foi sempre reforçar que tinham total autonomia e que podiam dizer “não” a qualquer momento. Acho que isso é fundamental, porque existe uma dinâmica de poder. Sou mais velha do que eles. Sou a realizadora e eles são os actores. Querem corresponder às expectativas, querem agradar-me. Felizmente, ambos têm uma personalidade forte. E ajudaram-se muito um ao outro, o que foi precioso para mim. Na verdade, filmar as cenas de amor foi um dos momentos mais bonitos da rodagem, porque havia um ambiente de enorme conforto e intimidade.
O filme ficou muito próximo do argumento que escreveu?
Por um lado, sim, é essencialmente a história que queria contar. Mas, ao mesmo tempo, mudou imenso. A nossa primeira montagem tinha quase três horas, e a versão final tem menos de duas. Portanto, há muita coisa que acabou por não entrar no filme.
Mas adoro o processo de montagem, e tivemos uma montadora incrível, a Amrita David (Saint Omer (2022)). Nós as duas estávamos sempre dispostas a cortar algo. “Vamos tirar e ver como fica!” Há muito mais que se comunica no ecrã do que na página – um simples olhar pode dizer tudo.
E que olhares! Pode falar sobre a incrível Kani Kusruti, que tem uma presença tão fascinante no papel de Anila, a mãe da Mira?
Já conhecia o trabalho da Kani e mencionei-a ao nosso director de casting logo na primeira reunião. Ela enviou uma gravação que nos deixou completamente arrebatados.
Ela tem uma energia imprevisível – nunca sabemos bem o que vai fazer a seguir. Isso também se reflecte na forma como trabalha como actriz. Não gosta de ensaiar demasiado, e acho que nem ela própria sabe exactamente o que vai fazer! Ela consegue, genuinamente, estar no momento, e sente-se isso.
Essa sensação de “o que é que esta mãe vai fazer a seguir?” era essencial para o filme. Não vi muitas actrizes com essa qualidade. E quando juntámos a Kani e a Preeti na mesma sala ... foi pura magia.
Como se sente por levar a sua primeira longa-metragem ao Festival de Sundance?
Nos primeiros dias depois de termos recebido a notícia, pensei: “E se eles mudam de ideias? E se nos dizem que foi um engano?” Só quando o anúncio foi feito é que se tornou realmente real.
Como cineastas independentes, mitificamos o Sundance. Sonhamos que os nossos filmes cheguem lá, mas nunca acreditamos verdadeiramente que vão! Parece algo impossível. São submetidos milhares de filmes, e muitos deles devem ser excelentes. Por isso, sinto que foi como ganhar a lotaria.
Claro que quero dar uma palmadinha nas minhas próprias costas e dizer: “Fizeste um grande filme!”, mas também sei que há muitos outros grandes filmes que não chegaram lá. Sinto-me muito afortunada.
Quero que muitas pessoas vejam este filme. Porque, embora esteja muito enraizado na Índia dos anos 90, acho que é uma história que se pode conectar com o público de qualquer lugar.
E espero que a estreia no Sundance lhe dê essa visibilidade.