Happy End

 Críticas

O realismo segundo Michael Haneke

Michael Haneke continua a ser um metódico e intransigente observador das convulsões internas da nossa Europa: "Happy End", presente na secção competitiva de Cannes/2017, é mais um prodigioso exemplo do seu labor.

Releio as linhas que escrevi [...] quando "Happy End", de Michael Haneke, passou em Cannes, na secção competitiva de 2017. E, embora reconhecendo que se tratava de um objecto não susceptível de gerar consensos (ainda bem...), confesso que não esperaria que sobre ele se abatesse um tão grande silêncio — para não dizer indiferença.

De tal modo que "Happy End" se tornou um objecto ausente de todos os balanços europeus de 2017, como se o facto de pensar a Europa para além de lugares-comuns ideológicos ou banalidades dramáticas justificasse uma espécie de punição simbólica... Enfim, digamos apenas que o filme chega ao mercado português mais de um ano depois da sua revelação em Cannes e que isso não o impede de ser um invulgar acontecimento.

Que Europa? Pois bem, uma entidade que emerge da perturbação que se instala numa família do norte de França face os refugiados que foram acolhidos na região de Calais (no campo, entretanto desmantelado, que ficou conhecido como a 'Selva'). O que Haneke filma não é o confronto, ainda menos a comunicação, entre os dois universos, antes a sua coexistência num presente carregado de contradições e interrogações.

Deparamos, afinal, com a mesma precisão realista de títulos anteriores de Haneke, em particular aqueles que lhe valeram duas Palmas de Ouro em Cannes: "O Laço Branco" (2009) e "Amor" (2012). O realismo, entenda-se, não é a acumulação de sinais superficiais, à maneira da mais rotineira informação televisiva — é, isso sim, um trabalho intenso e obsessivo sobre os elementos do quotidiano que dizem mais do que as suas aparências.

Como sempre, isso é conseguido através de um elaborado e complexo trabalho com os actores, também eles superando os códigos comuns de representação "psicológica". Destaquemos Isabelle Huppert, Jean-Louis Trintignant, Toby Jones e Mathieu Kassovitz. E sublinhemos, em particular, a presença radical de Fantine Harduin — no cinema de Haneke, também as crianças não são estereótipos.

João Lopes, cinemax

6b3971f3 416a 4bcd 8595 0756035659fa

 

"Happy End": O novo filme de Michael Haneke é o retrato de uma alta burguesia à beira do fim

Depois de Amor, o realizador Michael Haneke regressa com Happy End, um drama familiar, filmado em Calais, onde expõe as entranhas da alma.

Já aprendemos que em Michael Haneke não podemos confiar nem nos deixar levar pelas aparências. Com mestria, o realizador austríaco seduz-nos para uma falsa banalidade quotidiana, para depois nos tornar vulneráveis às suas minudências, tão vulgares e promíscuas quanto universais. Assim acontecia, de forma sublime, em Amor, o seu anterior filme, e assim acontece, com uma subtileza arrasadora, em Happy End, que chega agora às salas portuguesas.

A ação decorre em Calais, porto de passagem para o Reino Unido, numa concentração de refugiados, alojados num campo, recentemente extinto, conhecido por “a selva”, dadas as suas severas condições. Porém, Haneke não partiu em busca de refugiados magrebinos ou do Médio Oriente. Interessa-lhe, antes, o retrato de uma alta burguesia local que, apesar do luxuoso teto, não encontra refúgio para a alma.

Há, portanto, algo de extremamente perverso naquele que, aparentemente, não é mais do que o retrato de uma família estruturalmente disfuncional. Haneke vai ao fundo das personagens, em busca dos traços imensuráveis de desafeto ou de desespero. Há uma podridão que afeta a teia de relações familiares e que sobressai no momento em que Eve se torna refugiada na própria casa (a casa do pai e do avô), após a mãe ter ido parar ao hospital. Eve, aos 15 anos, oscila entre a depressão e a manipulação, numa adolescência impenetrável, o que se torna particularmente fascinante na relação com o avô, na qual se atingem, em clímax, quadros máximos de subversão e de desesperança. No entanto, em situação diferente estão os sobreviventes, os que ainda não desistiram de construir a realidade, e, especialmente, o tio Pierre, uma espécie de louco da aldeia, que diz a verdade e que sofre as consequências.

Happy End não é uma obra maior de Haneke, equiparável a Amor ou O Laço Branco, mas não deixa de ser um filme de uma sensibilidade pecaminosa, que nos confronta com as entranhas psicológicas da Humanidade, com uma elegância desarmante.

Excelente interpretação de Jean-Louis Trintignant e da jovem Fantine Harduin. Um papel exigente de Franz Rogowski e papéis discretos, mas eficazes, de Isabelle Huppert e de Mathieu Kassovitz.

Manuel Halpern, Visão

maxresdefault

+ info: aqui