Mais um Dia de Vida / Another Day of Life
12 MAR | 21H30 | IPDJ
Mais um Dia de Vida, Raúl de la Fuente e Damian Nenow, PL/ES/DE/BE/HU, 2018, 85', M/12
Sinopse: Mais um Dia de Vida é a adaptação ao cinema do livro homónimo de Ryszard Kapuscinski, um dos maiores repórteres de guerra do século XX.No Verão de 1975, ele é enviado para Angola, numa altura em que os portugueses estão em debandada e os movimentos de libertação se envolvem numa guerra civil sem tréguas. De uma Luanda transformada em cidade fantasma sitiada, até à fronteira sul à beira da invasão sul-africana, Kapuscinski é uma testemunha ímpar do nascimento conturbado de um novo país. Com uma técnica de animação extraordinária e um trabalho documental que vai ao encontro dos homens que com ele então se cruzaram, o filme é uma belíssima homenagem a um grande repórter de guerra.
Críticas
Na linha da fronteira
Um híbrido não-ficcional de animação e documentário que transpõe para o écrã o espírito de Ryszard Kapuscinski.
Como é que se faz justiça no grande ecrã à escrita literária de um repórter como Ryszard Kapuscinski? A solução encontrada pelo espanhol Raúl de la Fuente e pelo polaco Damian Nenow é o trunfo desta adaptação do livro que Kapuscinski escreveu sobre a guerra civil em Angola em 1975. Trata-se de combinar uma narrativa contada em animação com uma vertente de documentário tradicional, intercalando pelas sequências animadas imagens de época e entrevistas contemporâneas.
Apesar das comparações que inevitavelmente têm sido feitas, Mais um Dia de Vida não é outra Valsa com Bashir. O filme de Ari Folman era uma memória das experiências do seu realizador, inteiramente feita em animação; aqui, temos literalmente outra coisa, um híbrido que assume por inteiro a sua localização nas fronteiras, nem ficção nem não-ficção, nem animação nem imagem real, mas tudo isso e em todos esses lados ao mesmo tempo. Essa diluição tem o enorme mérito de conseguir transpor para o écrã a visão de Kapuscinski, fazer-nos ver os eventos pelos olhos do repórter que, na sua busca do inevitável “furo” jornalístico, não consegue pôr de lado a sua humanidade e a sua personalidade. Ser jornalista não é apenas observar e transmitir; é também fazer as ligações, articular os pontos, perceber como tudo se inscreve na big picture, na Grande História. Na forma escolhida por De la Fuente e Nenow, a Grande História é o contexto que as cenas documentais dão, as memórias de quem esteve “nas trincheiras” com Kapuscinski e pode confirmar os pormenores, e a “pequena história” que lhe dá sentido são as vivências do repórter durante estes dias titânicos na corda bamba transformadas em animação. Que são, aliás, os momentos mais inspirados de Mais um Dia de Vida: uma correnteza imparável de imagens, cores, olhares, movimentos.
Mais um Dia de Vida não é um filme isento de defeitos. Nunca temos verdadeiramente a sensação do perigo a que Kapuscinski se expunha ao partir em busca do general Farrusco (talvez porque o próprio repórter não a tivesse). A banda-sonora de Mikel Salas é dispensável quando não redundante. O trabalho de vozes (com todas as personagens a falar um inglês macarrónico com sotaques despropositados) é um “calcanhar de aquiles” que só por milagre não dá cabo do filme. Mas o que falha nesses pormenores é mais do que compensado pela alma, pelo modo como faz valer a mensagem universalista de Kapuscinski sem precisar de cair na pedagogia política, respeitando a extraordinária complexidade da realidade. Mais um Dia de Vida prefere ser um filme vivo a ser um filme perfeito — e isso dá-lhe um outro élan. Jorge Mourinha, Público
"Mais Um Dia de Vida era o livro preferido de Kapuscinski. Houve até quem dissesse que o polaco foi para Angola jornalista e regressou escritor. Também para Raúl de la Fuente é um livro especial. "Publicou-o em 1976 e em 2002 acrescentou um epílogo em que disse que voltava em pensamento àquelas pessoas que conheceu em Angola, que se perguntava pelo seu paradeiro", recorda.
Ora, o realizador tomou o epílogo como uma pergunta dirigida a si e decidiu responder. "Vou contar a tua história tal como a puseste no livro e também vou contar a dos teus amigos." "Entre todos, vamos fazer este filme. Não terá só a tua voz, mas também a voz deles. Pareceu-me que valia a pena lutar por este formato." Markus Almeida, Sábado
Another Day of Life é um projeto cinematográfico que procura estar à altura da riqueza de escrita e da complexidade humana da herança de Kapuscinski. Desde logo por essa decisão invulgar: elaborar uma evocação histórica fundamentada no artifício formal, e também no dramatismo da aventura, que o desenho animado pode favorecer.
É um desenho apostado em preservar algumas componentes realistas na definição das figuras humanas e respetivas ações, nessa medida parecendo querer prolongar a extraordinária experiência do israelita Ari Folman, em A Valsa com Bashir, sobre a guerra do Líbano de 1982 (curiosamente, um título que concorreu para a Palma de Ouro, em Cannes, na edição de 2008). Com uma sugestiva diferença: no caso de Bashir, os testemunhos documentais eram integrados, ou melhor, transfigurados (também) em imagens animadas; agora, em Another Day of Life, a dupla de realizadores - o espanhol Raul de la Fuente e o polaco Damian Nenow - apostou numa estratégia ainda mais radical: as imagens animadas vão alternando com registos documentais, em imagem real.
Segundo os autores, essa "duplicidade" narrativa era importante para dar conta de uma personagem como Kapuscinski e, em particular, o modo como Angola transformou o modo de olhar e sentir o mundo à sua volta. Ambos sublinharam tal dimensão em declarações ao site oficial do festival. Segundo De la Fuente, tratava-se de expor a batalha de um jornalista "que luta para sobreviver e encontrar a verdade no caos de uma guerra confusa"; além do mais, evocando o humanismo de Kapuscinski, definido por Nenow como alguém que sabia respeitar "qualquer pessoa", com ela lidando "para além das diferenças culturais e religiosas". [...] João Lopes, DN
Outras leituras