Diamantino
30 ABR – IPDJ – 21H30
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Crítica
“Diamantino”: mais misturado e menos banalizado
Se a mulher quiser ser homem
e homem ser a mulher,
Que importe se tudo junto
E um pouco mais misturado
Não vem a ser mais gostoso
E menos banalizado?
António Botto, «Caderno proibido»,
in O Mundo Gay De António Botto de Anna M. Klobucka
Gabriel Abrantes é um desses realizadores com uma produtividade que quase nenhum outro realizador nacional consegue acompanhar (só talvez Salomé Lamas). Por isso mesmo o conjunto das suas obras vai-se torneando elegantemente à medida que faz os seus filmes (à cadência de dois por ano, mais coisa menos coisa), iluminando facetas que se supunham escondidas e ultrapassando fixações antigas. Por exemplo, olhando para a obra completa de Abrantes percebe-se que há um momento de viragem (viragem essa que não só é narrativa, é também, e acima de tudo, estética) marcado pelo filme Ennui Ennui (2013).
Embora haja uma oscilação entre as duas velocidades da sua obra, é evidente que a introdução de efeitos digitais, a apropriação de uma estética vinda do mainstream norte-americano (e da cultura popular como um todo, do O.C. ao Herzog, dos irmãos Farrelly a Michael Bay), a claridade das histórias e dos planos e enquadramentos, a introdução da sátira e do humor enquanto instrumentos de reflexão sobre os grandes dilemas da contemporaneidade (a tecnologia, os instintos, a sexualidade e agora a identidade de género e o drama dos refugiados) marcaram uma cisão (não total, é certo) com a primeira fase da sua obra, mais próxima da vídeo-arte e da performance filmada. E a juntar a tudo isso, há também um trabalho sobre os géneros cinematográficos (o documentário, o terror, a comédia, a ficção-científica, o filme de época, o filme etnográfico e a lista podia ir seguindo) que surgem sempre miscigenados pelo olhar pop da cultura e do cinema de Hollywood. Diamantino (2018) funciona, de certo modo, como a conclusão (ou pelo menos a culminação) dessa nova vida. Mais não seja por se encontrarem aqui várias recorrências dos seus trabalhos em metragem curta.
Em Diamantino temos um subplot dedicado a uma agência de espionagem que opera drones para a frente e para trás e uma conspiração que envolve um laboratório genético escondido e a clonagem de uma estrela do futebol. No fundo, encontram-se aqui momentos, soluções ou atmosferas que já vinham de filmes como: (1) Ennui, em que o personagem principal era, nem mais nem menos, um drone, daqueles que bombardeiam o Afeganistão mas que têm remorsos e daddy issues com o seu operador, Barack Obama; (2) Os Humores Artificiais (2016), em que, de novo, o protagonismo ia para uma inteligência artificial flutuante virada para o stand up que se apaixona por uma indígena da Amazónia (em Diamantino, o alvo do desejo é uma rapariga lésbica de Cabo Verde a tomar uma identidade masculina); (3) também The Hunchback (2016) trabalhava a ficção científica, desta feita uma realidade virtual em que os humanos do futuro poderiam desfrutar um reencontro com a Natureza e as suas origens transformando-se em primários aldeãos medievais, autênticos cepos; (4) assim como Freud und Friends (2015), um mockumentary protagonizado por “Herner Werzog” aos confins do subconsciente artístico (do próprio Abrantes), de onde origina grande parte da componente onírica de Diamantino – só que agora em vez de tamboris cantantes que aparecem do meio do nada, são cachorrinhos felpudos que pululam no relvado do estádio de futebol (e a paródia televisiva desse filme encontra também reflexo no programa de Gisele, interpretada por Manuela Moura Guedes).
Diamantino começa realmente como paródia ou sátira (dependendo do grau de acidez que se lhe quiser atribuir) da maior estrela do futebol português contemporâneo. E o retrato começa na caricatura – como aliás grande parte dos trabalhos anteriores do realizador, que vem brincando com personagens históricas como Manet, Brancusi ou Vaz de Camões, ou da modernidade, o já referido Obama ou Justin Bieber. De facto, o realizador recupera Carloto Cotta no papel de Diamantino, de modo não muito distante dos personagens que já desempenhara em The Hunchback, Freud ou mesmo Fratelli (2012). Isto é: o tal papel de cepo – que, segundo o dicionário Priberam, tem como sentido figurado “pessoa estúpida que não serve para nada.” Só que esse cepo acaba por se revelar algo muito mais tocante e sensível do que uma primeira impressão poderia conceber. Como referiu o realizador na apresentação do filme na abertura do QueerLisboa: “este é um filme sobre uma pessoa tão cândida, tão naif, que se permite experimentar coisas para as quais nenhum de nós teria disponibilidade”. E esse é o grande achado do filme, próprio de uma metragem mais larga: dar espaço à sua personagem para sair da mera caricatura (que dada a sua força é algo difícil e nunca totalmente conseguido), mostrando-se afinal figura doce e romântica (como Humores Artificiais já ensaiara), num romantismo de derreter corações.
E é aqui que convém centrar o olhar: na ambiguidade que o filme sempre trabalha entre o brincar e o levar-se a sério, entre o conteúdo político e a simples rêverie surrealista, entre a paródia e a sinceridade para com o seu protagonista. É exactamente nessas áreas cinzentas que o filme parece deliciar-se, deixando o espectador sempre em riste, incerto se será de mau gosto fazer piadas sobre os refugiados ou ridicularizar o sotaque madeirense. Mas é aí que Abrantes e Schmidt encontram o seu espaço, trabalhando no gume da navalha do agora tão propalado “politicamente correcto”. Mas se se observar o filme atentamente percebe-se que grande parte das suas saídas humorísticas têm um enorme poder disruptivo que parte sempre da posição do espectador, isto é, quase sempre rimos-nos juntamente com os “maus” da fita. A nossa postura de espectadores moralizantes é posta em causa sucessivamente, até que, no final, só há lugar para a empatia.
E é chegada, finalmente, a hora de referir a epígrafe de Botto e a forma como Diamantino trabalha os papeis de género. A este respeito recordo um brilhante ensaio de Rebeca Bell-Metereau, intitulado Hollywood Androgyny, em que a autora trabalha as formas como o cinema norte-americano mudo, clássico e posteriormente o cinema dos anos 1960 e 1970 retrataram personagens que assumem papeis de troca de géneros (nomeadamente através do travestismo). Segundo Bell-Metereau existem duas categorias para a representação de figuras travesti, “o tratamento aberto que expande as nossas possibilidades, levantando mais questões que respostas; e o veículo fechado que estabelece fronteiras identificáveis e resolve ambiguidades”. A investigadora explica, de forma mais explícita, o que caracteriza cada uma destas categorias. Na forma aberta o travesti é mais “convincente” e o humor mais subtil e ambíguo – o espectador ri porque ele próprio tem dificuldade em lidar com a feminilidade/masculinidade do personagem que ele sabe ser fisionomicamente do sexo oposto, ao que se junta o conhecimento extra que o espectador tem sobre as outras personagens, criando-se assim um jogo de antecipações que encontra o humor na situação e na construção das tensões e no acumular dos enganos. Isto por oposição à forma fechada no qual o travesti toma a forma de uma ‘matrafona’. Aqui o espectador ri-se da figura, surgindo o humor de uma forma de humilhação e ridicularização.
Diamantino encara a androginia do seu protagonista e o travestismo da sua namorada da forma mais aberta possível, quebrando todas as fronteiras e deliciando-se nas ambiguidades – como diria Botto, é aí que é “mais gostoso”. O filme de Abrantes e Schmidt trata a questão da androginia/travestismo de dois modos distintos: o primeiro, e mais clássico, a personagem que necessita esconder a sua verdadeira identidade, neste caso uma rapariga lésbica de Cabo Verde que se faz passar por um rapaz refugiado, com vista a infiltrar-se na casa do jogador e assim averiguar de uma possível lavagem de dinheiro; o segundo, mais complexo, prende-se com a alteração genética de Diamantino (devido a experimentações científicas que fazem no seu corpo, no âmbito de uma acção do Ministério da Propaganda de um estado luso-nacionalista) que o transforma numa pessoa hermafrodita (crescendo-lhe mamas, que ele apelida de “carocinhos”). Se num caso a mudança de identidade tem o objecto de ocultar, no outro trata-se do seu oposto, de revelar.
Mas o mais interessante é que a “transformação” de Diamantino completa-se numa noite de lua cheia, o que me recorda algumas das leituras queer feitas sobre os filmes de monstros da Universal, nomeadamente esta sobre a figura do lobisomem onde se pode ler, e passo a citar: “women are mutable and ‘unstable’ in ways that men are not (they bleed on a monthly basis, and change shape during pregnancy), when a man turns into a wolf, he exhibits a similar instability and this feminizes him”. E é nessa noite de lua cheia, quando Diamantino se feminiza – literalmente, e não metaforicamente como o lobisomem – que Rahim, o seu pretenso filho/filha hétero/lésbico, se consegue finalmente apaixonar pelo seu pai/mãe adoptivo/a /amante – “mais misturado (…) e menos banalizado.” E esta união só me faz lembrar de um outro filme (e peço desculpa pela escrita esfrangalhada, mas o próprio filme favorece este tipo de divagações), Rita ou Rito?… (1927) de Reinaldo Ferreira que termina, nem de propósito, com a união (à porta da igreja) entre uma mulher travestida de homem e um homem envergando a black face do seu empregado, ou seja, um casamento pela igreja entre dois homens de etnias e classes diferentes. Essa semelhança entre dois filmes que distam mais de 90 anos diz muito sobre o humor de Abrantes e Schmidt: o slapstick do mudo agora tomado por uma pertinência política perfurante.
E muito haveria ainda por dizer sobre as sequências de crucificação de Diamantino, a utilização plástica da imagem feita pintura impressionista, a referência à ascensão dos movimentos de extrema-direita, ao poder da publicidade e da apropriação irónica do cinema como ferramenta propagandística…
Ricardo Vieira Lisboa, À Pala de Walsh
outras leituras:
Cannes: Diamantino vence semana da Crítica com delírio surreal que afirma Gabriel, Paulo Portugal. Insider, 13-05-2019
Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt: o diamante cor-de-rosa, Alexandre Melo. Visão, 29-03-2019