Lúcia Cheia de Graça / Troppa Grazia

 

21 MAI | IPDJ | 21h30 - LÚCIA CHEIA DE GRAÇA,  Gianni Zanasi, Itália, 2018, 110', M/14

sinopse, festivais, trailer: aqui

Notas da crítica nacional:

De vez em quando, o cinema traz-nos uma surpresa, um filme que agarra uma boa ideia (...) E a ideia deste filme italiano - que não quero revelar para não estragar o prazer do inesperado que é um dos trunfos de LUCIA CHEIA DE GRAÇA- preenche bem o objectivo. Tudo se caldeia em torno de Alba Rohrwacher, luminosa actriz (em estado de graça)... - Expresso 

Podemos acolher com simpatia um filme como Lucia Cheia de Graça, do italiano Gianni Zanasi. Não é, de facto, todos os dias que alguém nos convoca para uma história em que uma topógrafa recebe ordens de Nossa Senhora - assim mesmo, "La Madonna", a pioneira. - Diário de Notícias

Quando Gianni Zanasi e Alba Rohrwacher abraçam o género "amigas à força", onde Lucia é obrigada a aturar as birras e as agressões físicas da Mãe de Deus, o filme ganha uma energia profana (...) tem piada. - Sábado 

Notas da crítica internacional:

Esta intriga nasce da fé do realizador naquilo que conta. O filme seduz. Mas nesta combinação tocada pela graça, Alba Rohrwacher é a mais milagrosa das actrizes. Télérama

Uma fábula dos tempos modernos. Com a magnética Alba Rohrwacher. Bande à part

COMENTÁRIOS DO REALIZADOR

Acho que ninguém sabe realmente porque é que uma história é contada. Mas uma vez contada, acho que saímos a ganhar. Talvez não haja um porquê e simplesmente um como. A Lucia ‘apareceu-me’ pela primeira vez de forma muito inesperada. Eu vi-a a vaguear sozinha, num grande centro comercial. Percebi logo que era uma personagem ‘selvagem’, um espírito independente. Pensei que talvez vivesse numa cidade da província. Fantasiei que passara a infância num belo campo. Segui-a e senti que carregava um grande peso. Advinha dum sentimento de interminável desgaste diário. Um peso que era obviamente meu, tão forte que aconteceu algo impensável: a Lucia virou-se e deparou-se com uma menina de véu, que a olhava e lhe disse com a seriedade própria da idade: ‘Vai falar com os homens’. A Lucia olhou-a, assustada, e respondeu-lhe (secundada por mim): ‘Porque não vais TU?’ E eu desatei a rir-me. Parecia impossível… Sinceramente, foi assim que tudo aconteceu. Com uma bela gargalhada. E essa gargalhada chegou a alguns extremos. O súbito e incongruente sentimento do Mistério, a nossa vida que tem contacto com outro mundo, mesmo que de uma maneira banal: por um lado, o mistério imóvel e poderoso, por outro, o nosso dia-a-dia confuso. As questões profundas que sentimos, as respostas aleatórias e desajeitadas que lhes damos, e ainda mais as perguntas que evitamos. Verdades e mentiras. Troppa Grazia (Lucia’s Grace) apresentou-se imediatamente como um filme de extremos que podem ser tocados e contrastados. Mas naquela altura, eu fiquei confuso, não percebia porque é que tinha de ser eu a fazer um filme com a Virgem Maria. Acabei por arquivar aquela imagem – achava-a bonita e louca – e dediquei-me a outra coisa. Só passados alguns anos, novamente do nada e sem motivo aparente, voltei a ouvir a voz da Virgem Maria, perguntando-me: ‘Tens falado com os homens?’ E a voz de Lucia respondendo, ansiosamente: ‘Eu não falo com homens, não achas que isso é o teu papel?’ E voltei a rir-me em voz alta. Comecei a escrever o argumento. Mas tenho de ser sincero, não estava particularmente empenhado. Mas quando escrevia o primeiro rascunho, aquilo que me cativou e me fez trabalhar nele dia após dia, foi o facto de me fazer rir tanto. Também me percebi que, sendo tão excêntrica, a história poderia ter sido muitas coisas: uma sit-com irreverente, uma reflexão sobre a religião moderna, etc. Só que depressa me apaixonei por Lucia, e dei por mim a ter uma relação completamente empática com ela. Como podemos deixar de amar alguém que diz à Virgem Maria: ‘Eu já disse não! És mais insistente do que uma criança!’ Pondo-me no lugar dela, perguntei-me: e se isto me acontecesse? Não num filme, mas na vida real. Como reagiria? Essas questões eliminaram qualquer obstáculo que pudesse haver entre mim e ela. E foi assim que, com tantas possibilidades, só restou uma. Aquela que eu acredito que tinha de ser.

Este não é, claramente, um filme com uma inclinação religiosa. Não é um filme sobre a capacidade de acreditar em Deus. É, sim, sobre a nossa capacidade de continuar a acreditar, mesmo que já não sejamos crianças. Sobre a nossa capacidade de sentir, de imaginar. A nossa senhora do filme não é a da bíblia. É Simplesmente ‘A Nossa Senhora da Lucia’. Uma expressão esquizofrénica da capacidade de acreditar, típica da infância, que Lúcia pôs de parte durante tanto tempo, mas a que volta a sentir, fervilhando, para a impedir de esmagar a sua parte viva. Mais ninguém lhe poderia ter aparecido. Sinto que o achamos tão fascinante na Virgem Santíssima – além da iconografia que nos incutiram em crianças - é a sua intransigência. Um olhar que tem a limpidez de outra era, que diz à era moderna, refém de tantos compromissos: ‘Tu não és tudo’. Uma ‘Nossa Senhora’ que reclama a atenção dos homens e repete uma incansável mensagem ética e existencial que ninguém quer ouvir, aquilo que, no final, Lucia diz a si mesma: ‘Lucia, tens de dizer a verdade, a vida é curta’. É por isso que eu adoro Lucia, já que ela ainda não está absolutamente certa daquilo que lhe está a acontecer, e porque mesmo que ainda não tenha percebido – nem lhe seja possível percebê-lo, porque ainda está a viver a experiência – ela se permite viver a sua vida ao máximo, com todas as consequências inerentes. Isto ilustra o esforço necessário para voltar a criar espaço no nosso coração para uma complexidade de sentimentos, e para o grande mistério de sentir aquelas coisas que não podemos ver.”

Gianni Zanasi