Não Te Preocupes, Não Irá Longe a / Don't Worry, He Won't Get Far on Foot

 QUINTA-FEIRA -  20 JUN - Esplanada IPDJ -  21H30

NÃO TE PREOCUPES, NÃO IRÁ LONGE A PÉ,  Gus Van Sant, FR/EUA, 2018, 114’, M/14

ficha técnica, sinopse, trailer: aqui

entrevista ao realizador

O novo filme de Gus Van Sant é um regresso a porto seguro e a casa — a Portland —, fixado em John Callahan (1951-2010), um cartoonista da cidade que ficou tetraplégico nos anos 70 mas que não desistiu de viver — tornando-se depois uma das vozes mais críticas do país. Gus cruzou o livro de memórias dele — o título vem daí: "Não Te Preocupes, Não Irá Longe a Pé" — com as suas. E trouxe Joaquin Phoenix, com quem não filmava há mais de vinte anos. [...]
John Callahan não é um artista muito conhecido fora dos EUA apesar da originalidade dos seus cartoons. Acha que este filme vai agora apresentá-lo ao mundo?
Sim, ele era um artista de small town. Eu conheci-o, não tão bem quanto queria. Ele não vivia longe de mim, a cerca de dez quarteirões da minha casa. Andávamos pelos mesmos sítios, pelas mesmas ruas. A sua reputação de ex-alcoólico antes do acidente somada ao humor negro do seu trabalho — ele tinha queda para temas macabros — criaram-lhe uma aura particular. Era frequente vê-lo nas ruas de Portland na sua cadeira de rodas. Por vezes, metia-se num táxi apropriado à sua condição física e ia jantar fora à beira-mar, a 90 minutos do centro da cidade. Morreu em 2010.
Já tinha este projeto na gaveta há muito tempo?
Desde 1996. Acontece que o Robin Williams adquiriu os direitos do livro nessa altura e começou a trabalhar numa adaptação para cinema em que o próprio deveria interpretar Callahan. Ele conhecia os cartoons dele dos jornais. Tive de recuar, mesmo conhecendo muito bem o Robin [Gus dirigiu-o em "Good Will Hunting" / "O Bom Rebelde"]. Callahan era uma figura que lhe assentava na perfeição. Acho que eles tinham muitas coisas em comum, e não estou a falar do problema do álcool, mas de uma mesma, e algo secreta, forma de angústia. Se alguém pretende interpretar a tua vida e esse alguém é Robin Williams, enfim, não fazes nada. Ficas à espera do que pode acontecer.
Só que Robin Williams não chegou a fazer esse filme...
Pois não, os estúdios nunca se mostraram muito interessados na história. Essencialmente, foi uma questão de dinheiro. O Robin chegou a pedir-me para o ajudar com o guião. Pensou em mim para realizar o filme, sabia que eu não faço filmes caros. Entretanto, afastámo-nos um bocado, perdi o contacto. Lembro-me de que ele me foi visitar a São Francisco durante a rodagem de "Milk" [algures em 2007], mas não voltámos a ver-nos. Não acompanhei o drama final da sua vida e a depressão [que o levou ao suicídio]. Depois da sua morte, em 2014, voltei à carga.
Desenvolvemos dois argumentos. A primeira versão estava muito ligada à relação de Callahan com a mãe ausente, ao passo que a segunda incidia nos episódios mais surreais da sua vida, num anedotário bem conhecido. Finalmente, escolhi uma terceira via, mais próxima do seu livro de memórias. Aquilo que me tocou mais foi o seu processo de recuperação pós-acidente. Como é que um tipo que fica tetraplégico e preso a uma cadeira de rodas para o resto dos seus dias depois de uma vida tão intensa, de excessos, arranja forças para continuar a viver?
Você lançou em definitivo Joaquin Phoenix, em "To Die For" / "Disposta a Tudo" , já lá vão 23 anos. Nesse filme, em que ele contracenava com Nicole Kidman, Joaquin era muito jovem. Tornou-se entretanto um ator único. Mas os vossos percursos profissionais nunca mais voltaram a cruzar-se até hoje. Porquê?
Não tenho uma explicação para isso. Nós mantivemos contacto ao longo de todo este tempo. Fomos vizinhos quando eu morava em Nova Iorque, depois mudámo-nos mais ou menos na mesma altura para Los Angeles. E encontrámo-nos muitas vezes, pensámos em filmes, inventámos histórias, "lembras-te disto que aconteceu, não dava um filme?...”.
Nunca aconteceu. Para este filme, ele foi a minha primeira escolha. Liguei-lhe, ele estava em L.A., aceitou imediatamente.
Como é que ele mudou enquanto ator?
Será que mudou mesmo? Tenho dúvidas sobre isso. Ele diz que está mais experiente, mais maduro. Conta que já se habituou a estar num set de cinema e que sabe escolher melhor os papéis — e é um daqueles atores que só escolhem o que querem. Sim, nesse aspeto mudou. Quando ele entrou em "Disposta a Tudo" , não tinha ainda feito grande coisa. A morte do irmão [River Phoenix, que Gus imortalizou em "A Caminho de Idaho"] era ainda uma sombra que pairava sobre a sua cabeça. Joaquin tinha 20 anos.
Este papel obrigou-o a um processo de preparação especial, isto é: ele passa a maior parte do filme numa cadeira de rodas.
Ele tem os seus próprios códigos. Dei-lhe uma cópia do livro do Callahan que ele anotou à sua maneira, estava todo marcado, sublinhado com várias cores, com post-its e agrafos. Coisas que ele julgou importantes. Notei que ele tinha algum receio de encontrar pessoas que o John conheceu. É sempre complicado fazer um filme sobre a vida de alguém. Acho que manter essa distância o ajudou. Também lhe passei umas gravações que eu próprio tinha feito com o Callahan, três horas de entrevistas. Sei que o Joaquin foi a L.A. ao centro de fisioterapia em que o Callahan recuperou, passou por lá uns tempos, conheceu alguns paraplégicos, falou com eles. A iniciativa não foi minha. Nem segui esse processo. Um ator como ele sabe o que tem de fazer.
É impressão minha ou o Phoenix, no filme, anda a uma velocidade estonteante naquela cadeira de rodas elétrica?
Ah! Às vezes é ele, noutras é o duplo. O verdadeiro John Callahan andava à mesma velocidade, 'sempre a abrir' nos passeios, aquilo chega a dar umas 20 milhas/hora de velocidade máxima. Chegou a ter acidentes, até a atropelar pessoas. Era o ruivo da cadeira de rodas, como uma personagem. Na fotografia do John que aparece nos créditos finais, ele tem uma cadeira igual à que usámos.
[...]
“Não Te Preocupes...” é um filme biográfico no sentido estrito, ou permitiu-lhe a liberdade de inventar algumas coisas?
É sempre necessário inventar qualquer coisa para sentirmos que o filme é nosso. Por exemplo, a personagem de Annu, a terapeuta de Callahan que se torna mais tarde hospedeira de bordo, é uma invenção nossa. Ou melhor, é uma amálgama de várias mulheres da vida de Callahan. Na realidade histórica, ele conheceu Annu no hospital, mas não voltou a vê-la. Teve algumas namoradas, incluindo uma hospedeira, que nós combinámos numa só personagem. Foi o Joaquin que me sugeriu a Rooney Mara para o papel e eu perguntei-me porque não, ela é uma ótima atriz e se eles se entendem bem... [Phoenix e Mara são namorados na vida e tinham acabado de rodar "Maria Madalena" antes do filme de Gus].
Aprendemos que o humor negro de Callahan era intenso e que ele era um daqueles tipos que diziam o que queriam sem ter medo de nada, sem pedir desculpas a ninguém. Potque é que o seu filme acaba quando a carreira dele como cartoonista começa?
Nem mais, aliás ele faz-nos falta, adoro imaginar o que ele poderia desenhar sobre a América de hoje, sobre Trump... Nos anos 70 em que ele começou, a América também fervilhava politicamente. Ele sempre foi um outsider e quis fixar-me nesse período. O seu handicap, embora isto pareça paradoxal, era o seu poço de força.
[...]
Beth Ditto, a ex-líder dos Gossip, e Kim Gordon, ex-baixista dos Sonic Youth, aparecem neste filme. Porquê?
Porque são amigas. E é com amigos que os filmes também se fazem. Elas trouxeram ao filme um espírito rocker e uma rebeldia que eu achei apropriada. A Kim Gordon já tinha entrado em "Last Days".
Francisco Ferreira, Expresso