A Herdade
DIA 28 | 21h30 | IPDJ
A HERDADE, Tiago Guedes, Portugal/França, 2019, 166', M/12
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
nota de intenções
O Peso das Heranças
O que faz de nós o que somos?
Ao longo da vida, são as opções e as escolhas que nos vão definindo, mas transportamos connosco matéria que não percebemos nem controlamos. Algo nos faz ser e agir, algo que nasceu connosco e nos foi passado, algo que herdámos. Este filme fala-nos dessas ligações invisíveis que nos definem e condicionam.
O cenário funciona quase como uma metáfora de tudo o que se passa com o nosso personagem principal, um homem carismático, daqueles maiores do que a vida. Ambos, o homem e a terra, começam grandiosos, imperiais, mas com o decorrer dos eventos vão revelando as imperfeições, as zonas cinzentas, e tanto um como o outro se começam a desmoronar.
A Herdade (palavra que tem origem no latim “Hereditas” tal como a palavra Herança) funciona quase como uma enorme ilha dentro de um país dominado por uma ditadura fascista. Uma espécie de reino dominado por um carismático príncipe anarquista e progressista. Mas que inevitavelmente chocará de frente com a vontade de mudança de um povo. Um confronto com as mudanças da história, com a passagem dos tempos. Eu quero muito filmar essas transformações humanas e territoriais. As consequências.
A paisagem de A Herdade será a descoberta da imensa lezíria e dos latifúndios de gado da margem Sul do Tejo. Uma visão insólita: o monte térreo, os celeiros, as searas, os cavalos, as lagoas ao sol, servirão de palco histórico, político e financeiro de Portugal nos últimos 60 anos, passando pela Revolução do 25 de Abril de 1974. E serão o espaço das obscuras acções das personagens, consumidas por angústias, preconceitos sociais, cobiças, amores e desencontros.
O universo de A Herdade remete-nos para muitos filmes que gosto profundamente. Filmes de espaços abertos, westerns perdidos no meio do nada, com personagens enigmáticos, que transportam segredos com eles como nos filmes de Leone e de Anthony Mann. Ao mesmo tempo que se exploram as relações humanas num tom de melodrama dos filmes mais clássicos de Minelli e Kazan.
Um filme de personagens, de actores, de interpretações fortes, da grandeza das paisagens que os envolvem e das consequências dos segredos que transportam. As heranças que nos deixam e as heranças que deixamos aos outros.
Tiago Guedes
entrevista com o realizador Tiago Guedes e o actor Albano Jerónimo
A Herdade é uma ficção inspirada por uma figura real. Mas essa inspiração parte da personalidade em si ou da realidade de um latifundiário?
Tiago Guedes: Para mim, não foi a personalidade, definitivamente. Foi a ideia de um tipo de pessoa. Mas acredito que a pessoa em questão tenha influenciado muito a primeira versão do argumento, escrita pelo Rui Cardoso Martins, que falou muito com ele, e haverá várias histórias que poderão ter contornos que tocam a verdade. No entanto, o objectivo nunca foi fazer um biopic. Foi apenas um ponto de partida – alguém que, num certo território nacional [Herdade da Barroca d’Alva], viveu uma mudança muito grande da nossa sociedade [o 25 de Abril].
Começou por ser o escritor Rui Cardoso Martins a tecer o argumento. O que é que se seguiu a essa estrutura narrativa?
TG: A ideia partiu do Paulo [Branco], que queria fazer um filme sobre esse território e um homem “maior que a vida”. Começou por trabalhar com o Rui e eu entrei no projecto quando já existia o argumento, de cuja história me apoderei um bocado, para levá-la ao encontro do que me apetecia falar – por isso torci-a um pouco... Depois entrou ainda o Gilles Taurand para ajudar e, por fim, peguei em todos estes ingredientes e escrevi o argumento final, ou seja, peguei nos outros e escrevi o meu. E com o [Roberto] Perpignani na montagem, ainda reescrevemos outra vez!
Este é um filme com uma escala, uma grandeza diferente na sua filmografia. O que é que o levou a um projecto com esta dimensão, digamos, épica, pouco comum no cinema português?
TG: Quando o Paulo falou comigo foi exactamente para irmos ao encontro de gostos comuns, de um certo tipo de cinema antigo – americano, italiano… – que é uma paixão de ambos. Portanto, nós fomos beber a esse universo. E estou a falar de filmes que têm essa tal escala. Depois, a forma de filmar, o respeitar dos tempos, o protagonista, tudo isto dá essa sensação de uma dimensão mais épica. Mas, da minha parte, nunca houve uma intencionalidade de fazer algo maior. A lógica foi: este objecto pede isto.
E o Albano, o que é que o atraiu em relação a este personagem?
Albano Jerónimo: Uma coisa extremamente simples: eu nunca tinha feito um protagonista em cinema. E isso era um desafio, desde logo, pela gestão diária do trabalho. Em teatro tenho-o feito, mas em cinema nunca tinha tido esse gosto. Depois, a construcção da personagem do João [Fernandes], esta ideia de ser alguém “maior que a vida”, este efeito eucalipto que seca tudo à volta, este género de homem que, antes de ler o guião, sempre achei que morreria cedo – e é precisamente o contrário. Estes tipos morrem tarde e as pessoas à volta é que vão morrendo…
Estamos a falar de um homem de contradições, capaz de defender a todo o custo os seus trabalhadores da perversidade política, mas com uma relação muito fria com a mulher e os filhos…
AJ: Essa é a parte mais deliciosa, porque é exactamente onde eu encontro o seu lado humano. Ele é um ser imperfeito, e ainda por cima tem uma grande dificuldade em expressar-se, em comunicar. E isso está reflectido num corpo, numa época, numa família, num contexto…
TG: Sobre isto lembro-me de falar com o Albano sobre a necessidade de o salvar, numa ou noutra cena. Salvar no sentido de o atirar para a zona cinzenta. E esses momentos estão lá. Por exemplo, quando ele chega a casa e tem um carinho para com a mulher – até foi uma sugestão do Albano e nem dissemos à Sandra [Faleiro] – ela não foi avisada, portanto não estava à espera, e isso ficou na montagem.
As breves cenas na cavalariça são das mais belas, e dão-nos também esse lado humano dele. Uma espécie de solidão romântica partilhada com o cavalo.
TG: É onde ele consegue estar. É o seu sítio.
E o cavalo chama-se Suão, como se refere no filme, o nome do vento… Vento, aliás, que se escuta muitas vezes como “banda sonora”. Esta relação que estou a fazer tem sentido?
TG: Todo o sentido. Aliás, no argumento original o cavalo nem se chamava Suão, eu trouxe isso para o texto. Vivi 8 anos no Alentejo e deparei-me muitas vezes com este tipo de vento, que é um vento circular, que te põe numa zona em que perdes um bocadinho a noção… Claro que estou a exagerar, mas há muitos suicídios com o momento do Suão, que é um vento quente e que, de alguma forma, nos enlouquece… Eu queria muito trazer isso para o filme, sem o sublinhar. Mas é curioso que tenha reparado, porque é verdade que, para mim, enquanto banda sonora, o vento tem mesmo um papel muito importante.
O cavalo combina ainda com uma certa linguagem de western, que está no modo como se filma a dinâmica das personagens através de olhares silenciosos.
TG: Esse é um dos géneros cinematográficos que me influenciaram, e de que gosto bastante. Vi muitos western, desde logo para escrever, e no sentido de privilegiar uma certa secura, procurar uma forma de ser parco em palavras… Aliás, o que eu quis trabalhar mais foi mesmo a gestão dos silêncios.
E a isso parece juntar-se a expressão do melodrama, particularmente de Home From the Hill/ A Herança da Carne, de Minnelli, pelo modo como observa os traços da liderança e da masculinidade, muitas vezes tóxica.
TG: O Home From The Hill é um filme que esteve na génese disto tudo, não enquanto história mas enquanto universo. Foi essa masculinidade tóxica que eu fui buscar, mas ao mesmo tempo para um homem que não quero que seja mau. E isso é muito relevante no filme do Minnelli – o Mitchum não é um tipo mau, é um padrão do homem daquela altura…
E daquela condição social.
TG: Absolutamente. Ele para ser um líder tem de ser assim. E isto agrada-me muito: o não se conseguir detectar um mau a sério. Porque acho que todos temos isso dentro de nós, somos todos potenciais bons e maus, e são as circunstâncias da vida que o vão determinando, conforme as encaramos.
O Albano também teve como referência o personagem de Robert Mitchum?
AJ: Claro. Agrada-me sobretudo a questão de se servir um propósito, um legado. E acho que o Mitchum é exactamente isso, tal como o João Fernandes. O Tiago tocou num ponto que é fundamental: a construcção do personagem também se fez à medida dos acontecimentos. Dito de outra forma, eu não acredito em personagens. Acredito sim que os acontecimentos vão definindo uma espécie de personagem.
Há uma ideia de circularidade que, a meu ver, percorre todo o filme, interna e visualmente, e que se desenha pelo próprio gesto da montagem. Por exemplo, na primeira vez que vemos o João Fernandes, ele está a fazer o volteio com o cavalo e o plano seguinte apanha o rosto do Miguel Borges com a câmara ainda “embalada” pelo movimento do volteio... Esta “forma” já estava pensada ou veio também com o contributo do montador Roberto Perpignani, na tal reescrita?
TG: A ideia da circularidade já existia narrativamente. Mas sem dúvida que a montagem potenciou isso de uma maneira que não estava programada. A circularidade assenta nas emoções que eles vão vivendo, e está na própria herança. Depois, alguns movimentos de câmara têm essa consciência, outros não, mas são potenciados pela montagem do Perpignani… A montagem para ele não é a mesma coisa que para um montador mais jovem, há uma noção de poesia narrativa que é extremamente difícil de alcançar. E quando lhe apresentei o material em bruto, o que ele fez foi de um autêntico garimpeiro!
Regresso à figura romântica do cavalo: que relação o próprio Albano estabeleceu com ele?
AJ: Dois meses antes da rodagem tive aulas de equitação, e para além disso cuidava do cavalo, lavava-o, limpava-o… Quis ir a esses pormenores para estar com ele, para me aproximar daquele animal de porte. Mas há uma coisa que nunca me esqueço, e que foi o [Raúl] Ruiz que me disse, quando trabalhei com ele: “confia sempre nos elementos.” Ele disse-me isto a propósito de uma cena em que o vento estava sempre a despentear-me e eu tinha tendência para ir lá com a mão e corrigir… E neste caso, a minha relação com o cavalo foi essa – de confiança, de escuta, de entrega àquilo que pudesse acontecer. Aqui o animal é que manda.
Inês N. Lourenço, Agosto 2019
crítica
"A Herdade" ou a nossa história para além dos lugares-comuns
Contrariando qualquer visão esquemática da nossa história, Tiago Guedes propõe, em "A Herdade", uma abordagem subtil de várias décadas portuguesas, pré e pós-25 de Abril - com especial cuidado no trabalho dos atores.
Mais do que nunca, creio que importa resistir ao maniqueísmo vingativo que insiste em pensar (?) o cinema português como um combate de galos entre filmes "populares" e filmes "intelectuais". Salvo melhor opinião, tal visão apenas tem gerado conflitos ideológicos cada vez mais vazios, em boa verdade alimentando uma dramática inércia das políticas culturais para o cinema.
Há questões conceptuais e narrativas incomparavelmente mais estimulantes. Uma delas começa no reconhecimento de que muitos filmes portugueses, "melhores" ou "piores" (não é isso que está em causa), mostram sérias dificuldades para lidar com as convulsões da própria história do seu/nosso país. Não poucas vezes, as memórias coletivas (p. ex.: em torno do 25 de Abril) são tratadas através de símbolos simplistas que apenas alimentam um militante vazio de pensamento sobre o que somos - e, sobretudo, como somos.
Isto para dizer que A Herdade, de Tiago Guedes, é um filme que aceita e, mais do que isso, arrisca lidar com a nossa história recente - algumas décadas antes e depois de 1974 -, contrariando lugares-comuns narrativos, esquematismos estéticos e preconceitos morais. Dito de outro modo: esta é a saga de um latifundiário, João Fernandes, exemplarmente composto por Albano Jerónimo num misto de contenção e fúria, que atravessa várias convulsões de Portugal ao longo do século XX, descobrindo (e nós com ele) as feridas afetivas do seu território familiar e, mais do que isso, a vulnerabilidade do tecido económico em que está inserido.
De alguma maneira reforçando o gosto realista que já marcava o seu Entre os Dedos (2008), o trabalho de Tiago Guedes possui, assim, o fôlego de uma aventura de muitas emoções que, subtilmente, sabe ir deslizando para uma genuína respiração melodramática. Entenda-se: o melodrama nada tem a ver com a formatação telenovelesca que se tornou uma poderosa e devastadora matriz cultural; é antes uma delicada arte de lidar com as forças mais secretas do comportamento humano e também, importa não esquecer, um dos mais genuínos e antigos géneros da produção cinematográfica europeia e americana (de Luchino Visconti a Vincente Minnelli).
Um dos aspetos fulcrais dessa energia melodramática envolve o tratamento das relações homens/mulheres e, em particular, os caminhos de resistência do imaginário feminino à força normativa do poder masculino. Nada a ver, entenda-se também, com o moralista simplista tantas vezes inadvertidamente favorecido pelas mais legítimas e bem intencionadas formas de militância social. Antes a delicada exposição de um modo feminino de ser e estar que, em A Herdade, encontra a sua expressão mais depurada na densidade emocional da personagem de Leonor, mulher do latifundiário. A sua interpretação, a cargo da brilhante Sandra Faleiro, é um invulgar e fascinante evento cinematográfico - e tanto mais quanto, no seu confronto desigual com o imaginário televisivo, o cinema português há muito perdeu a faculdade de gerar uma galeria de nomes e rostos realmente ligados ao grande ecrã.
João Lopes, dn