Serenata à Chuva / Singin' in the Rain
“Serenata à Chuva” é um filme sem idade para ser visto e apreciado por dezenas de razões ou apenas por uma: não é preciso embrulhá-lo em papel brilhante com laços coloridos, porque é para comer já.
Entre as muitas impressões que Hollywood tem conseguido fazer há um século, não deveria estar a de selectiva e ciclicamente se esquecer de si própria, tal como aconteceu, para dar um exemplo recente, na última cerimónia dos Óscares. Nessa noite da maior celebração mundial do cinema – ou, mais exactamente, do maior espectáculo mundial a propósito do cinema – que foi apresentada como de homenagem ao género musical, passou-se algo grosseiro, injusto e triste: um completo vazio de referências aos clássicos, como se fosse preciso esconder o que de bom foi feito antes de “Chicago” (2002). Entre os títulos que é preciso ter vergonha de não mencionar consideremos, mesmo sem uma investigação exaustiva, “My Fair Lady”, “Mary Poppins”, “Música no Coração”, “West Side Story”, “O Feiticeiro de Oz”, “Um Americano em Paris”, “Serenata à Chuva”, até “Branca de Neve e os Sete Anões.
Hoje convido-os a ver ou a rever “Serenata à Chuva”, mais um filme sem idade para ser visto e apreciado por dezenas de razões ou apenas por uma: não é preciso embrulhá-lo em papel brilhante com laços coloridos, porque é para comer já. É acolhedor, simpático, engraçado, espectacular. É um caso sério de medicina doméstica: serve para curar facadas nas costas, falhas na execução orçamental, défices galopantes, impostos com enormes orelhas que saem de cartolas, aumento do desemprego, diminuição da qualidade de vida, falta de companhia, tonturas, desalento geral, propostas de tarifas de telecomunicações cada vez mais complicadas, bicos-de-papagaio e até estabelecimentos mal iluminados.
A representação da canção “Singing in the Rain” é um dos maiores símbolos dessa panaceia, mas o filme vai além desse momento de perfeição para mostrar, pendurados na história como vistosos enfeites numa árvore de Natal ideal, outros quadros que conseguem entrar nas nossas vidas e ficar lá, num cantinho, até ao próximo momento em que instantaneamente germinem e cresçam, assomando ao nosso coração, episodicamente dando-nos algumas cotoveladas nas costelas.
O mais importante não é a história de um grupo de actores envolvidos na passagem do cinema mudo ao sonoro nos estúdios da Monumental Pictures. O mais importante é o que se passa – e como –, de tempos a tempos, em quadros que criam outro mundo, sem tempo nem lugar, uma impressão colorida e sentimental do que poderia ser, do que poderia ter sido, do que deveria ser, agora e sempre.
Gene Kelly, na sua dupla qualidade de actor principal e co-realizador (com Stanley Donen), Donald O’Connor (incrível em “Make Them Laugh”), Debbie Reynolds, Jean Hagen, Cyd Charisse e outros transcendem muito as limitações que podemos encontrar-lhes noutros trabalhos ou mesmo em figuras cinematográficas um pouco longínquas das estrelas (casos de Gene Kelly e de Debbie Reynolds) para atingir picos excepcionais. E não se esqueçam da cor, que, com a música, é outra protagonista, seja no colete amarelo de Kelly, no vestido verde de Charisse, nas roupas da passagem de modelos em “Beautiful Girl”, em tudo, em tudo (é claro que o mundo deveria ser a Technicolor)...
Quando um filme como este é preterido por ser “datado”, o problema será do tempo que passou desde que foi feito ou de falta de sensibilidade de muita gente que apenas sabe viver no nosso tempo?
Aurélio Moreira
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