Vitalina Varela
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
5 NOV | IPDJ | 21H30
VITALINA VARELA, Pedro Costa, Portugal, 2019, 124', M/12
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
críticas
O luto esculpido
Pedro Costa assina um filme colossal sobre os sonhos desfeitos de uma imigrante cabo-verdiana.
A páginas tantas do seu filme anterior ("Cavalo Dinheiro"), Costa apresentou-nos a Vitalina Varela: uma cabo-verdiana de meia idade que, nesse contexto, nos deixou pregados à cadeira com o relato da sua história. O que nos contou ela, então? Que, nos anos 80, o marido partiu sem aviso para Lisboa, para trabalhar como servente de pedreiro; que ela esperou 30 anos pelo seu regresso, ou por um bilhete de avião que lhe permitisse juntar-se a ele: que, quando por fim aterrou em Lisboa, o marido falecera já há três dias. É a história verídica da chegada de Vitalina a Lisboa que o filme epónimo encena, num gesto que nos comove pelo modo como vai esculpindo o luto da protagonista (magnificamente interpretada pela própria Vitalina).
As cenas iniciais instaIam-nos numa geografia familiar: a dos bairros de lata da periferia de Lisboa (Cova da Moura...). Quem em longos planos fixos atravessa esse espaço (uma sucessão de becos exígios e edifícios atamancados que forjam um labirinto de escombros) é uma galeria de figuras anónimas: os próprios moradores daqueles bairros que, aqui como nos últimos filmes de Costa, operam como duplos ficcionais de si mesmos. Descrevê-los como zombies por força dos seus movimentos trôpegos e do seu silêncio sepulcral é uma afronta: como bem exprime a sistemática composição em chiaroscuro dos planos (que reata laços com a pintura renascentista), eles representam o oposto: focos de luz e vida que vão resistindo às trevas e à morte que, nas margens do quadro, ameaçam devorá-los.
É nesse mundo que desembarca Vitalina, numa cena que atesta da economia e sensibilidade da realização de Costa. Aí, o que vemos? Um par de pés descalços nas escadas de um avião, sobtre os quais vão caíndo lágrimas que revelam a dor da protagonista. Depois, vê-la-emos ocupar a lúgubre casa do marido, um espaço que funciona evidentemente como um símbolo vivo dos seus sonhos desfeitos (“daquele amor não resta nada”, diz ela num dos seus maravilhosos monólogos). Aqui começa um longo pesadelo desperto, que se divide entre Vitalina e o padre local: uma figura mediúnica que cruza aos tombos as vielas do bairro, como quem leva a cabo um ritual xamânico – a sua voz balbuciante parece articular desordenamente os traumas dos que habitam ou habitaram aquele universo.
Sobre a narrativa minimalista do filme, nada mais diremos. O que importa vincar é a maneira como Costa faz jus ao sofrimento da protagonista, transformado cada plano numa “paisagem emocional” que o projeta. Para fazê-lo, o cineasta elabora um espaço que só existe na sua obra: um espaço cujo realismo é transfigurado por um minucioso trabalho plástico, que, sem nunca desrealizar, o coloca algures na fronteira do sonho. Estamos num território que, sendo embora concreto, é sempre filtrado pelas memórias das personagens: veja-se como a casa é amiúde enquadrada 'na oblíqua', para corporizar uma sensação de naufrágio. Esta constante operação de sublimação do espaço cativa pela sua força política: trata-se, no fundo, de esculpir a banalidade e dignificar a miséria (filmando um prédio em ruínas ou um rosto escalavrado como um monumento). Prova disso é o portentoso momento em que Vitalina sobe ao telhado da casa para, num plano que rivaliza com as telas de Turner, se debater com uma tarde de tempestade – que é como quem diz que os seus gestos têm a mesma dignidade e importância que Batalha de Trafalgar.
Vasco Baptista Marques, Expresso
★★★★★
Vitalina Varela, um rosto para amar
O filme que valeu a Pedro Costa o Leopardo de Ouro, e à sua atriz, Vitalina Varela, o Leopardo de Prata, chega às salas portuguesas coberto de prestígio internacional - este justifica-se perante o colosso de amor colhido pela lente do cineasta.
a sua chegada noturna a Lisboa, uma mulher cabo-verdiana, de olhos grandes e intensos, desce de pé descalço as escadas metálicas do avião. Não chegou a tempo do funeral do marido, que se enterrou há três dias, e, ainda mal pisou o chão, já outras mulheres lhe estão a dizer para voltar para trás, que não há nada para ela neste lugar. O seu nome é Vitalina Varela e dá título ao filme que Pedro Costa realizou tomando a sua presença magnética como pedra angular. Aqui, ela conta a sua história, narra-se a si própria, entre a vulnerabilidade do luto e o estoicismo da postura.
Se a dita entrada forte que tem no filme parece assinalar um momento inaugural, só o é simbolicamente. Na verdade, não se trata da primeira vez que deparamos com Vitalina no cosmos do cinema de Pedro Costa. Foi, sim, no anterior Cavalo Dinheiro (2014) que ela ofereceu uma nova página à narrativa dos imigrantes cabo-verdianos que tem vindo a moldar a fase mais recente da obra do cineasta (esta, só por si, em contínua correspondência interna). E já então a robustez do seu semblante, ao lado do de Ventura - outra "personagem" fundamental deste universo -, fazia adivinhar a necessidade de um capítulo à parte. Ela tinha ali um filme anunciado. Por isso mesmo, Vitalina Varela, que deu ao realizador um dos prémios máximos atribuídos ao cinema português, só poderia intitular-se assim, distinguindo a figura mágica, de carne e osso, que está no seu centro - esta, igualmente galardoada.
Vemo-la entrar na penumbra da casa do falecido marido e aí assentar a dor que carrega há mais de 25 anos, quando ele partiu de Cabo Verde para vir trabalhar para Lisboa e a deixou à espera. O que Vitalina guarda dentro de si traduz-se nas palavras que pronuncia, uma epístola de frustração, um monólogo que dirige ao espírito do marido, aproximando-se da(s) sua(s) memória(s) através dos traços físicos da casa e de uma profunda crónica de ausência. Toda a expressão do seu corpo é o sustentáculo da dimensão grandiosa que o filme adquire, à medida que a sua voz se junta à de Ventura - ele, desta vez, a assumir a personagem de um padre. Uma forma de transcendência acontece pela junção das suas palavras, e, de repente, o que é tão da ordem do terreno toca qualquer coisa de divino.
A escuridão que envolve praticamente todo o filme - o qual se poderia resumir na ideia de "uma imensa noite", como a certa altura se diz - atravessa desde sempre o cinema de Pedro Costa. Mas talvez essa escuridão se sinta ainda mais absoluta em Vitalina Varela, no modo como desafia a luz dos corpos desalentados, e como mantém a morte suspensa em torno dos vivos. Porém, o amor desenha-se no rosto desta mulher que afasta as trevas à sua maneira, para oferecer uma possibilidade de esperança. Um amor que parte da própria génese do trabalho de Pedro Costa, cada vez mais comprometido com a verdade alojada nos seus não-atores, que procura extrair a partir de um transe cinematográfico: as "cartas" que se vão ditando à posteridade (como aquela de Ventura em Juventude em Marcha) são as de quem não tem voz na vida real.
É a dignidade de seres humanos como Vitalina e Ventura que interessa à lente do melhor dos nossos cineastas contemporâneos. Veja-se como filma a narrativa dos próprios corpos, dos pés ao semblante, passando pelas mãos, no rasto da rugosidade do passado. Haverá alguém a olhar de maneira tão sublime o sofrimento concreto dos que sobrevivem à margem da sociedade? Como escreveu João Bénard da Costa a propósito do que se "vê" nos filmes de Pedro Costa: "Sobreviver é repetir incessantemente uma carta de amor." Ora Vitalina Varela é uma colossal carta de amor.
Inês N. Lourenço, dn.pt
★★★★★