A Portuguesa
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
19 NOV | IPDJ | 21H30
A PORTUGUESA, Rita Azevedo Gomes, Portugal, 2018, 136', M/12
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
testemunho da realizadora:
Aqui, como nos meus filmes precedentes, tudo começa na minha imaginação, depois torna-se na minha vida e nela se mantém muito tempo depois do filme terminado. A realidade é muito complexa, as histórias dãolhe forma. O reflexo da vida é, por vezes, mais interessante do que a própria vida. Este conto de Robert Musil, enigmático e livre de psicologia, tem algo a ver com isto. Agustina Bessa-Luís, numa escrita sem hesitação, insere os espaços insondáveis da novela de Musil traços muito concretos mas que, ao mesmo tempo, não nos dizem tudo, intrigam-nos. Seduz-me muito o não dito. Tudo o que se passa entre a Portuguesa e o marido (Von Ketten) assenta no não dito. Ninguém sabe ao certo se realmente existiram ou não. Não é a veracidade disso que importa. Esta história, num determinado período da História, rente ao Principado Episcopal de Trento, liga-nos a uma série de factos que reflectem – em muito – o tempo actual, partindo do princípio de que os nossos antepassados não eram diferentes, apenas estavam num lugar diferente. Não é difícil fazer do homem gótico ou, do grego antigo, o homem da civilização moderna. Não me interessa tanto de onde vêm as coisas mas para onde as quero levar. Se é verdade que uma pessoa só faz um único filme ao longo da vida, também é verdade – pelo menos no meu caso – que, a cada vez, se parte ‘esse filme’ mil pedaços para voltar a fazer de outra maneira. Nesse sentido serei sempre uma aprendiz. Não procuro uma reconstituição histórica. Não desejo recuperar o passado, para mais um passado tão longínquo - nem creio que tal seja possível, ou tenha razão de ser. No texto de Musil gosto do que nele há de contemporaneidade. Quando o mundo lá fora nos pesa sobre a língua, e se misturam todos os discursos em que entendidos e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, acredito que o A Portuguesa, falará por si. Os filmes nada salvam. E não estamos em condições de nos salvar a nós próprios, sobre isso não restam dúvidas. Mas, um filme onde estes temas estão implícitos parece-me certo e justo nos nossos dias. Interessa-me tudo o que há de decisivo na vida; o que desafia o destino e que acontece para lá do entendimento. Como Musil disse algures: A grandeza humana tem raízes no irracional. E se filmo uma árvore, um rio, uma estrada, é só isso que procuro entender e expressar.
crítica
História, símbolos e poesia
Com o filme "A Portuguesa", a realizadora Rita Azevedo Gomes convoca-nos para o reencontro com uma tradição cinematográfica marcada pelo gosto da memória histórica. Ponto importante: as imagens assinadas por Acácio de Almeida.
Face a um filme como "A Portuguesa", podemos perguntar como é possível "reconstituir" as atribulações de uma dama portuguesa (Clara Riedenstein) no século XVI, no norte de Itália, aguardando o regresso do seu marido (Marcello Urgeghe), um nobre de ascendência germânica que partiu para a guerra?
Valerá a pena começar por lembrar o óbvio. Que é também sempre o mais esquecido. A saber: nunca há "reconstituição" do que quer que seja — filmar é criar uma narrativa presente e para o presente. Eis algumas esclarecedoras palavras da realizadora, Rita Azevedo Gomes: “(...) tudo o que se passa entre a Portuguesa e o marido (Von Ketten) assenta no não-dito. Ninguém sabe ao certo se realmente existiram ou não. Não é a veracidade disso que importa. Esta história, num determinado período da História, rente ao Principado Episcopal de Trento, liga-nos a uma série de factos que reflectem o tempo actual, partindo do princípio de que os nossos antepassados não eram diferentes, apenas estavam num lugar diferente. Não é tão difícil fazer do homem gótico ou do grego antigo o homem da civilização moderna.”
Redescobrimos, assim, as virtudes de um cinema que se enraiza nas memórias históricas para se ramificar num exercício de encenação e reflexão em que os ecos de tais memórias surgem contaminados por elementos de natureza simbólica e poética. Nesta perspectiva, talvez possamos inscrever "A Portuguesa" (adaptado de uma novela de Robert Musil) numa tradição cinematográfica em que podemos encontrar as referências emblemáticas de Manoel de Oliveira, Jacques Rivette ou Ermanno Olmi.
Sustentado por uma produção de recursos minimalistas, mas muito consistente, "A Portuguesa" distingue-se por um magnífico trabalho de direcção fotográfica, da responsabilidade de Acácio de Almeida. Ele é, afinal, um dos nomes centrais da história da fotografia no cinema português, com uma vasta filmografia que inclui títulos tão especiais como "O Passado e o Presente" (Manoel de Oliveira, 1972), "Brandos Costumes" (Alberto Seixas Santos, 1975) ou "A Cidade Branca" (Alain Tanner, 1983).
João Lopes, rtp.pt/cinemax