Os Mortos Não Morrem
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
3 DEZ | IPDJ | 21H30
OS MORTOS NÃO MORREM, Jim Jarmusch, Suécia/EUA, 2019, 104', M/14
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
entrevista ao realizador
Os zombies do gentleman Jim
Jarmusch falou-nos de um filme de género que lhe deus imenso gozo fazer com os amigos do costume: “Os Mortos Não Morrem”.
Em "Os Mortos Não Morrem", uma aldeola americana assiste impotente ao fim do mundo e a uma invasão zombie à escala global enquanto Jarmusch se diverte a dirigir uma parada de estrelas a que ele chama a sua tribo: aqui estão Adam Driver, Bill Murray, Steve Buscemi, Danny Glover, RZA, também Tom Waits, Iggy Pop, a companheira de sempre, Sara Driver, e claro, Tilda Swinton - ela que, para Jim "é a rainha de tudo no filme. Quem me dera que vivêssemos num planeta matriarcal liderado por ela, isto seria tão porreiro..." Estes mortos que não morrem, já o dissemos em Cannes, são uma paródia destinada a fazer figura de amuse-bouche. Quanto a Jarmusch, é sempre um prazer reencontrar o entusiasmo e a verve de um cineasta único.
Comecemos por um pormenor: Adam Driver, que se chamou Paterson no seu filme anterior, chama-se Ronnie Peterson em "Os Mortos Não Morrem". Isto tem algo que ver com o verdadeiro Ronnie Peterson?
Não estou a perceber...
O piloto sueco da F1 dos anos 70 . . .
Humm... nem tinha pensado nisso. Estes nomes são piadas para me divertir a mim próprio. Ele só é Peterson agora porque foi Paterson, com 'a' , no anterior. A Tilda Swinton é Zelda Winston porque Winston é um anagrama de Swinton, está a ver? Mas não tenho uma explicação para isto.
Ronnie Peterson, piloto interpretado por um Driver...
Caramba, quer ver que fiz uma private joke para os suecos sem me dar conta?
Passemos aos zombies. Gosta de filmes de zombies?
Eu gosto de todos os tipos de filmes mas no que ao horror diz respeito, os zombies não são dos meus favoritos. Conheço a história deles no cinema, gosto do pioneiro "White Zombie" [Victor Halperin, 1932] com Bela Lugosi, falta-me ver "The Walking Dead" [Michael Curtiz, 1936], com o [Boris] Karloff. Definitivamente, não me atraem. Exceto o que fez George Romero, que para mim é o mestre pós-moderno do género. Porque ele mudou o que os zombies são. Antes dele, vinham dos rituais vudu, eram controlados e subservientes. Mas com Romero e "Night of the Living Dead" , eles tornam-se incontroláveis, derivam da própria identidade que tinham quando eram humanos e de uma ordem social, isto é, são como nós, vêm de nós. E não são só monstros, são também vítimas: alguém os lixou. Romero acrescentou um capítulo a esta mitologia.
Normalmente os zombies não falam. Fazem uns barulhos. No seu filme repetem uma palavra.
Uma só, ligada a qualquer coisa de que gostavam em vida.
E têm um guarda-roupa muito variado: isto é uma maneira de nos dizer que um filme de zombies de Jarmusch jamais será um filme qualquer?
De certa forma, sim. Este é também o primeiro em que um zombie abatido se transforma em pó. Os mortos estão dissecados, não têm fluidos, foi no que pensei quando estava a escrever o argumento. Além disso, o gore e o splatter não são a minha onda, pode imaginar certas cenas de "Os Mortos Não Morrem" se os zombies tivessem sangue? Eu não queria ver isso. Nem saberia filmar isso.
Os seus zombies preferem tomar café...
Certo.
Qual foi a reação de Iggy Pop quando lhe falou neste filme?
A do costume: "O que é que queres que eu faça agora e quando começa a rodagem?" O Iggy é um soldado. Todos os atores o são, aliás. Porque é que eles aceitaram entrar neste filme é coisa que eu não sei, o orçamento era tão curto, foram pagos simbolicamente. Só o fizeram porque estamos juntos nesta tribo, todos eles, o Tom Waits, a Tilda, o Steve Buscemi, para quem escrevi o papel daquele estúpido racista - e logo ele, que é a pessoa mais adorável e menos preconceituosa que eu conheço. E já o conheço há muito tempo, desde 1978.
E aquele zombie que sai da terra a pedir "wi-fi, wi-fi.. "?
Estamos a ser endoutrinados neste consumismo criado pelas corporações dos todo-poderosos, é o que querem de nós. Acho esta ideia muito poderosa: o zombie a sair da sepultura e... para onde vai? Vai ao centro comercial...
Nada têm nada que ver com vampiros, e você já fez um filme de vampiros também, "Only Lovers Left Alive".
Os vampiros são muito sofisticados, elegantes, sexuais, têm de ser inteligentes para sobreviverem, são vulneráveis à luz do sol. E eu adoro-os.
Identifica-se o seu ponto de vista com o do eremita Bob, a personagem de Tom Waits que assiste à distância, pacatamente, à destruição do mundo?
Completamente, eu estou no lugar do eremita e no dos três adolescentes irreconciliados com a sociedade que vão chegar ao sítio errado à hora errada. São personagens que se excluíram da ordem social. O Bob vive na floresta. Quando fiz a primeira versão de montagem perguntaram-me qual é a relação dele com o livro do Melville ["Moby-Dick"], sugeriram-me que cortasse, que não fazia sentido. Bom, mas faz sentido para mim. Prova que ele não é um troglodita. Não podia na história ter o mesmo destino dos outros.
Quanto a teenagers, sempre gostou deles...
Foram uma espécie de guia ao longo da minha vida, a nível cultural e outros, pelo estilo, pela música, ao mesmo tempo que estão confusos por todas aquelas transformações hormonais violentas. A cultura teen é muito importante. Não sei se já ouviu esta miúda, a Billie Eilish, a cantora, é brilhante. Ela tem uma canção chamada 'Bellyache' sobre uma adolescente psicopata que está na autoestrada à espera que a polícia a leve porque ela matou os amigos e os corpos estão na mala do carro. Foi escrito por uma artista de 15 anos. Mas veja-se Mary Shelley, outra teenager brilhante. Bobby Fisher, mestre de xadrez aos 14 anos. A adolescência está subvalorizada, é o que eu acho.
Costuma rever os filmes que já fez?
Vou contar-lhe: só os revejo uma vez. Foi sempre assim. E com uma verdadeira plateia que pagou bilhete: as sessões de estreia aqui em Cannes com os executivos da L'Oréal — sem ofensa — não contam. Gosto de me infiltrar uma vez, numa sala normal e numa sessão normal. Sento-me discretamente na última fila, ninguém dá por mim. E está feito.
Quando "Only Lovers Left Alive" se estreou, o produtor Jeremy Thomas disse que você é o único cineasta americano independente que resta. Passe o exagero, como é que se lida com esta ameaça de extinção?
Acho que ele estava a referir-se sobretudo à ideia de um mundo de cinema no qual eu ainda me consigo mexer e trabalhar e que, se calhar, vai acabar comigo. Mas não me sinto isolado. Há cineastas novos, como os irmãos Safdie, que são suficientemente fortes para não cederem ao comercial. Adoram o cinema e os filmes que fazem expressam-no. E isto não se pode matar. O sistema está mais apertado, não vai engendrar outro Jim Jarmusch, outro Spike Lee, outra Claire Denis, outro Aki Kaurismaki (que é uma espécie de eremita Bob à sua maneira), mas novos virão, como os Safdie.
Disse em tempos que as más críticas o motivam, ainda é assim?
Eu gosto de criticas extremamente más. As que são só más não me interessam, não lhes acho graça. Mas as que odeiam realmente o filme, essas, adoro lê-las, porque estão no oposto absoluto do que eu sinto. Fazem-me pensar no tempo colossal que investi no que acabei de fazer. E tornam-me mais forte.
E quando lhe dizem que está a reciclar o seu próprio trabalho?
Não foi Godard quem disse que os cineastas fazem sempre o mesmo filme uma e outra vez, com pequenas variações? A minha força como artista é intuitiva, não analítica. O que hei de fazer, uma comédia musical? Eu detesto comédias musicais. Prefiro o eremita Bob a dizer: "What a fucked up world! " Agora fiz este tolo filme de zombies com os meus amigos, qual é o problema? Não há problema. As autorreferências são rasteiras que eu prego a mim próprio, ao Adam, ao Bill. É importante que os filmes se abram a esses acidentes. Em tempos, estive em depressão profunda. Sentei-me numa floresta a pensar na vida e, de repente, uma raposa cinzenta, raro animal que também sobe às árvores, olhou-me intensamente nos olhos e desapareceu num flash. Foi como uma revelação que me trouxe de volta à realidade. Eu não estava no presente. A raposa estava. E o presente é o tempo que conta.
Ainda escreve cartas à mão para convidar os seus atores para um filme?
Sim, porque não tenho conta de e-mail. Os argumentos também são escritos à mão. Num caderno destes. E o caderno guarda tudo, rasuras, rabiscos, manchas de café, é um registo do trabalho. Não gosto de computadores. A minha bandeira é a dos piratas.
Francisco Ferreira, Expresso
crítica
"Os Mortos não Morrem": A vida, o amor e os zombies no novo filme de Jim Jarmusch
O registo zombie-indie do novo filme de Jim Jarmusch é, pura e simplesmente, hilariante. (...)
Depois do filme de vampiros – Só os Amantes Sobrevivem, de 2013 –, Jim Jarmusch, um dos maiores ícones da cena indie norte-americana, volta a trabalhar o cinema de género, com este Os Mortos não Morrem, um filme de zombies. Se os colocarmos lado a lado, parece-nos clara a postura do realizador sobre estes (sub)géneros. Para Jarmusch, os vampiros são um assunto sério, pretexto para refletir sobre grandes questões filosóficas, como a vida e a morte ou o desejo de eternidade dos homens. Ao invés, os zombies são pura diversão cinéfila, pretexto ótimo para a comédia e para uma desconstrução referencial do próprio cinema. Ou seja, enquanto o filme de 2013 nos deixava inquietos e contemplativos, Os Mortos não Morrem deixa-nos fascinados e bem-dispostos, embora seja sempre possível encontrar outras camadas.
A ação passa-se numa “parvónia” nos confins dos EUA, uma povoação com menos de mil habitantes, pacata, isolada e com uma saudável lentidão. Sem motivo aparente, a Terra confunde-se no seu movimento de rotação e o dia tarda em pôr-se. Isso provoca as mais estranhas reações dos animais e, claro está, dos mortos, que despertam. A dupla de agentes locais, formada por Bill Murray e Adam Driver (ambos com interpretações impagáveis) lida com tudo isso de forma surrealistamente calma. Os seus diálogos, de um desajuste quotidiano e de uma calma titânica, são desconcertantes e, ao mesmo tempo, vão desmontando, de forma felliniana ou pirandelliana, o próprio filme – são personagens conscientes de serem personagens. A isto, acrescente-se um Tom Waits perfeito no papel de eremita; Tilda Swinton como agente funerária e mestre samurai de um pragmatismo gélido, deliberadamente artificial; e Iggy Pop, o mais convincente dos mortos-vivos. Pode dizer-se que, em Os Mortos não Morrem, Jarmusch pôs toda a carne no assador.... Embora os zombies a comam crua.
Manuel Halpern, visão