Dor e Glória
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
10 DEZ | IPDJ | 21H30
DOR E GLÓRIA, Pedro Almodóvar, Espanha/França, 2019, 113', M/16
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
entrevista ao realizador
Em “Dor e Glória”, Pedro Almodóvar entrelaçou a própria vida na ficção. Antonio Banderas é o seu alter ego. Esta é a história de um cineasta com medo de ter perdido o alento e o desejo.
Mais do que um filme autobiográfico, "Dor e Glória" deixa-se 'contaminar' por Pedro Almodóvar por todos os poros, longe de qualquer tentação narcisista. Na história, Antonio Banderas interpreta Salvador Mallo, um cineasta maduro que vive de dores e de glórias como o título. O passado persegue-o, os filmes também, e há amantes que não se esqueceram. Salvador vive só, mal sai de casa, restam-lhe poucos amigos. Receia estar a entrar em crise criativa.
Chamou a este filme "Dor e Glória". Porquê? É essa a vida de um realizador de cinema?
Creio que este título pode ser o resumo da vida de qualquer ser humano. Pelo menos, eu gostava que fosse. Glória soa a êxito pessoal - é verdade que parece que se cola logo a um realizador de cinema, mas, para mim, tem outro significado, tem mais que ver com a vontade de viver. E com o que queremos fazer com as nossas vidas. Já a dor, infelizmente, é comum a todos nós. Vamos oscilando entre as duas palavras na nossa existência.
Qual foi a maior dor da sua vida?
É uma pergunta complicada. Para responder literalmente, diria que a minha maior dor vem da coluna vertebral. Há três anos, tive de ser operado às costas e descobri que o nosso corpo gira em torno delas. Foi um momento muito difícil da minha vida, fiquei praticamente imobilizado, aquilo alterou por completo os meus dias e o meu trabalho. A recuperação foi lenta e dolorosa. Já no campo emocional, a época mais difícil da minha vida foi quando tive de romper com uma pessoa que continuava a amar. A convivência entre nós tinha-se tornado impossível. Abandonar alguém que amamos — e por muito que a razão nos diga que é preciso romper e nunca mais olhar para trás é algo antinatural. O amor está vivo. E eu tive esta sensação quando me separei: foi como se me tivessem amputado um membro. Tudo isto está neste filme.
A impossibilidade de separar a criação da vida privada?
Também. No caso de Salvador Mallo, essa impossibilidade impede-o de continuar a fazer filmes.
Porque é que escolheu Antonio Banderas para interpretar o seu alter ego?
Bom, em primeiro lugar queria que Salvador Mallo fosse um homem mais belo do que eu. Mas há muitas outras características que faziam de Antonio o ator legítimo para este papel. Tem a idade exata da personagem que escrevi e também tem experiência com a dor em todos os sentidos. Também há dois ou três anos, ele teve um problema de saúde muito sério, de coração, foi operado três vezes. Continua jovial e simpático como sempre, mas aquela experiência vincou-lhe a cara e as feições irremediavelmente — e isso era importante para mim. Por outro lado, tem sido uma testemunha da maior parte da minha vida adulta.
Ele não precisou de ler o guião duas vezes?
Exato, percebeu à primeira do que se tratava. E isso tranquilizou-me, porque eu sempre fui muito frugal e cauteloso com a minha vida privada e muito protetor dos meus amigos. Aliás, há momentos da minha vida em "Dor e Glória" que até o Antonio desconhecia.
Lembra-se do momento em que o conheceu?
Muito bem, foi no Café Gijón, em Madrid. Tinha-o visto dois ou três dias antes num teatro vizinho a esse café, o María Guerrero. Ele tinha um pequeno papel num clássico de Calderón de Ia Barca, "La Hija del Aire". Abordei-o no café, achei-o muito bonito. Para mim, era uma personagem romântica. E pedi-lhe para fazer uma audição, só para ver como andava, como olhava, e que desejo havia nos seus olhos. Procurava um ator para "Labirinto de Paixões" [1982]. E ele foi tão intenso, tão espontâneo, que tive imediatamente a certeza que ele nascera para estar à frente de uma câmara. Ele tinha 21 anos. Havia qualquer coisa de épico nele, uma bravura natural. E agora pedi-lhe para interpretar alguém completamente diferente, um homem frágil, deprimido.
Que fala pouco e prefere escutar. Alguns amigos disseram-me que não o reconheceram no ecrã, pois só me viram a mim nele. Isto é muito curioso. Porque ele nunca tentou imitar-me. E isto vem da intuição dele, o Antonio deixou-se impregnar por mim e isto é muito irracional, é um dom que ele tem.
"Dor e Glória" é ou não um filme autobiográfico? Li que a casa de Salvador é uma réplica da sua em estúdio.
É verdade, e a equipa de decoração poupou assim uma semana de trabalho. Quero confessar-lhe isto: eu não fazia a menor ideia de que este filme seria sobre mim quando comecei a escrevê-lo. E duvidei muito em levá-lo para esse caminho. Nunca em qualquer outro filme meu fiquei tão exposto.
Mas nisto, passou-se outra coisa, porque o próprio processo de escrita gerou uma distância em relação à realidade e, neste caso, ao que eu sou. Isto é: dei-me conta de que estava a escrever sobre mim próprio, mas ao mesmo tempo era tentado pelo poder da ficção. E eu acho que, neste filme, é a ficção que ganha. Aquela distância foi ainda mais óbvia durante a rodagem. Jamais tive o sentimento de estar a ser representado por Antonio. Jamais me incomodei com o facto de Salvador poder ser o que eu sou. E sofri com isso, custou-me, era como se eu estivesse a descolar-me de mim próprio. A nível psicológico, este filme gera uma dinâmica e um jogo de espelhos muito estranhos. Por isso, na rodagem, e de forma natural, limitei-me a exercer a minha profissão de realizador, como se dirigir Antonio fosse uma mera casualidade. Naquele momento, não me senti vinculado a Salvador.
"Dor e Glória" é também um filme sobre a solidão...
A um tal ponto que a solidão é quase uma personagem. Reconheço que me isolei cada vez mais do mundo nos últimos anos. Ando, aliás, a fazer esforços para sair um pouco mais de casa agora, antes não podia por causa da dor física. Comove-me bastante aquele momento da vida — e eu acho que isto acontece a tanta gente... em que deixas de atender o telefone e de ir a casa dos amigos. Provavelmente, eles também deixam de vir à tua. E um dia descobres que estás sozinho.
Dá-se bem com a solidão?
Habituei-me a ela. Não me pesa. Quando escrevo um filme, tenho de estar sozinho. Mas não estou desligado da realidade, interessa-me muito o que se passa no meu país e para lá das minhas janelas. E participo sempre como cidadão quando sou chamado a participar em algo importante. E contudo, este isolamento a que cheguei agora — sem todavia me ter tornado um misantropo — faz com que eu já não sinta a falta que antes tinha de saber da vida das outras pessoas. Durante muitos anos, eu tive em Madrid uma 'vida coral'. E excêntrica. Tudo o que fazia estava sempre relacionado com muitas pessoas, e a minha inspiração vinha delas, as ideias de cada história que é sempre uma coisa muito abstrata — desenrolavam-se a partir delas. Hoje, essa quotidianidade desapareceu para mim. A luz perturba-me — houve até quem me julgasse um bocadinho snob por eu aparecer tantas vezes de noite com óculos escuros. E um paradoxo: um realizador de cinema que tem fotofobia. Mas eu tenho-a! O ruído incomoda-me, não posso suportar uma noite de discoteca, tenho estas terríveis enxaquecas há muitos anos e que me deitam abaixo facilmente. Sinto que perdi o contacto com determinadas gerações e isso magoa-me, como uma ausência. Por exemplo, se começar a escrever a história de um adolescente espanhol de hoje, posso saber quais são os seus tópicos. Mas nunca conhecerei profundamente esse adolescente. Porque também nunca tive filhos. E isso prova-me que o isolamento tem um preço e que estou a pagá-lo. Enfim, não me estou a queixar. Há casos muito mais trágicos do que o meu. No filme, Salvador tem um problema bem mais difícil do que o meu.
Voltando à autobiografia disfarçada: não fecha "Dor e Glória" uma trilogia que talvez tenha começado há mais de 30 anos em "A Lei do Desejo" e passado por "Má Educação"? E não era você quem estava já atrás de "Julieta", outro filme de glórias e dores que quase serve de preparação para este?
Absolutamente. É verdade. "Julieta" foi um ponto de inflexão no meu trabalho em que me dei conta de que mudei de estilo narrativo e de tom. Abriu-se um novo período com uma nova gravidade. A dor está muito presente nos dois filmes e o modo como me aproximo dela é comum. Em "Julieta", há uma mãe desolada que está à beira da loucura. Tratei-a com contenção, austeridade e com o máximo respeito pelo seu drama. E isso contraria em tudo a minha tendência anterior para um certo espalhafato e para o barroquismo. "Julieta" foi-me muito útil nesse sentido e não creio que conseguiria ter feito "Dor e Glória" sem passar pela experiência anterior, que foi muito grata. Este tom sóbrio e austero ajusta-se melhor às histórias que quero escrever agora. E à minha própria vida.
Está desde sempre ligado a mulheres — é, de resto, um 'cineasta de mulheres' — e, mais concretamente, à mãe, com tudo o que isso representa. Um dos seus filmes disse-nos até 'tudo sobre ela'. A mãe surge agora em "Dor e Glória" encarnada por Penélope Cruz. Pode falar-me deste assunto?
A minha mãe morreu há exatamente 20 anos e ainda está muito presente na minha vida. Tenho duas irmãs e um irmão, continuamos a falar muito dela, teve uma influência muito forte em todos nós. O modo como a mãe de Salvador descreve ao pormenor como quer estar vestida no dia do seu funeral vem de uma revelação que a minha mãe fez a uma das minhas irmãs mais velhas e que eu só soube muitos anos depois. A cultura da morte em La Mancha é muito grande. Não tem equivalente com nenhuma outra parte de Espanha nem com a cultura do seu país, Portugal. E é uma cultura feminina, uma coisa secreta, que passa de mães para filhas, e que a nós, homens, não nos diz respeito. Emocionei-me muito ao colocar esse episódio no filme. Quando a minha irmã o viu, contou-me algo mais: a minha mãe, que passou os seus últimos anos num pueblo a 200 quilómetros de Madrid, levava na mala, sempre que viajava, a roupa do seu próprio funeral. E eu acho que as minhas irmãs vão continuar esta tradição. Às vezes visitam-me e deixam-me o frigorífico cheio de comida para o fim de semana. E eu digo-lhes que não vale a pena, para quê tanto trabalho, "posso mandar vir do restaurante" ... Mas elas fazem questão. Vêm da mesma 'escola'. Aprenderam a cozinhar com a minha mãe.
"Dor e Glória" é especial nesta fase da sua vida?
É um filme que vem do mais profundo de mim mesmo e que me deixa vulnerável. E essa foi a paixão que me levou a realizá-lo. Tenho medo de perder essa paixão, claro. Sei que, se esse momento chegar, terei as mesmas inseguranças de Salvador e que não filmarei mais.
Mas não é um filme-testamento.
Francisco Ferreira, Expresso
crítica
Almodóvar 80 1/2
Mais pessoal, mais vulnerável, mais exposto, mais Almodóvar: Dor e Glória é um filme de maturidade, uma memória e um adeus aos anos 80.
Depois de Fellini Oito e Meio, eis Almodóvar Oitenta e Meio. É irresistível dizê-lo, porque Dor e Glória é Almodóvar escondido com Banderas de fora, como Oito e Meio era Fellini escondido com Mastroianni de fora — um filme sobre um cineasta em crise que procura uma saída. Claro: Fellini não poria o seu cineasta em crise a fumar chinesas com o actor do seu filme mais mítico depois de 30 ano sem se falarem. Mas Almodóvar não é Fellini. E Dor e Glória se calhar até é mais Amarcord (no modo como todo o filme é construído ao sabor das memórias que vão e vêm e são recriadas) com uns pozinhos de Mamma Roma (no modo como todo o filme vai sempre dar à mãe-coragem a que Penélope Cruz dá uma ressonância de Magnani).
Portanto, Dor e Glória seria o Almodóvar que os fãs das obras-primas Tudo sobre a Minha Mãe / Fala com Ela /A Má Educação reclamavam (erradamente) que o homem já não era capaz de fazer. Pelo menos foi essa a reputação com que o filme saiu de Cannes 2019, reputação essa que se compreende por inteiro: Dor e Glória é obra de maturidade, de elegância e graça e seriedade quase sem esforço, sempre com um olho na ligeireza quase insolente daqueles primeiros filmes como Matador, Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos ou Negros Hábitos.
Salvador, o alter ego do realizador, rapaz do pueblo que conquista Madrid em plena Movida antes de se tornar cineasta respeitado, é alguém que não fez (ainda?) as pazes com o seu passado, e aquilo que Almodóvar nos mostra, nas idas e vindas entre uma infância pobre mas feliz e um presente rico mas angustiado, é uma possível estrada para a "salvação" (mas pode Salvador, que nem sequer quis ser padre, ser o salvador de si próprio, já que não o conseguiu ser da mãe?). Tudo filmado como só Almodóvar o sabe fazer: num cenário hiper-pop-art de cores fortes e primárias que nunca esconde o artificio do estúdio (ou de palco), como se a casa de Salvador tivesse ficado presa na década de 1980.
Aliás, sim, há telemóveis e computadores neste filme mas tudo é analógico, tudo se resolve em livros, palcos, conversas, copos, desenhos. É uma viagem no tempo a um período áureo, uma viagem ao passado em busca do princípio do mundo, do princípio do desejo — do primeiro momento em que a imagem se formou na cabeça de Salvador e do modo como ela fez o seu sinuoso e quase inexplicável percurso até este momento de crise em que o encontramos. Talvez até um adeus.
Será certamente um Almodóvar mais pessoal, mais vulnerável, mais exposto do que os últimos filmes seus que vimos - e volta a confirmar que o cineasta espanhol consegue tirar de Antonio Banderas e Penélopr Cruz coisas que nenhm outro consegue ( e Banderas, sobretudo, é tão certeiro num papel quec exige um difícil equilíbrio que chega a ser escandaloso que mais ninguém o deixe representar assim). Mas, para lá dessa vulnerabilidade, que permite até alguns momentos de grandíssimo cinema ( o espantoso reencontro entre Salvador e o seu namorado dos anos loucos, a que Banderas e Leonardo Sbaraglia dão uma justeza comovente), a verdade també, é que Dor e Glória se limita a confirmar que como o Almodóvar maduro é um classicista de primeira água com mão de mestre para o melodrama, capaz de colocar tudo no sítio certo sem perder tempo nem esforço. Já sabíamos disso, é essa a marca do seu cinema nos últimos anos, Dor e Glória não lhe traz novidades formais. Não precisa.
Jorge Mourinha, Público