A Idade de Ouro / L'Âge d'Or
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
Apresentação por Miriam Tavares (Prof. Doutora & Coordenadora do CIAC)
Distribuição gratuita de folha de sala
Tertúlia pós filme
o ciclo extenso em homenagam a Vítor Reia-Baptista termina na data do seu nascimento
'Depois de Um Cão Andaluz, era inconcebível realizar um daqueles filmes que já na altura chamávamos “comerciais”. Queria permanecer surrealista a todo o custo. Como estava fora de questão pedir um novo financiamento à minha mãe, não havia solução. Desisti de fazer cinema.
No entanto, tinha já imaginado dezenas de ideias e situações – como uma carroça cheia de operários atravessara um salão mundano, ou um pai que mata o próprio filho com um tiro de caçadeira porque este tinha deixado cair no chão a cinza do cigarro – e anotava-as, só para o caso. Contei-as a Dalí numa viagem que fiz a Espanha. Afirmou que estava muito interessado. Estava ali um filme. Como fazê-lo?
Voltei para Paris. Zervos, dos Cahiers d’Art, pôs-me em contacto com Georges-Henri Rivière que por sua vez me apresentou aos Noailles, que conhecia bem e que tinham “adorado” Um Cão Andaluz. Comecei por responder, como ficava bem, que não esperava nada dos aristocratas. “Está enganado, disseram-me Zervos e Rivière, são pessoas fantásticas e deve absolutamente conhecê-los.” Finalmente, aceitei ir jantar a casa deles na companhia de Georges e Nora Auric. O palacete dos Noailles, na place des Etats-Unis, era esplêndido e continha uma colecção de obras de arte quase inconcebível. Depois de jantar, junto à lareira, Charles de Noailles disse-me: - Propomos que realize um filme de cerca de vinte minutos. Total liberdade. Uma só condição: temos um compromisso com Stravinsky e ele fará a música. - Lamento imenso, respondi, mas como podem imaginar que eu possa colaborar com um senhor que se põe de joelhos e dá murros no peito? Era de facto o que se dizia de Stravinsky. Charles de Noailles teve uma reacção que eu não esperava e que me deu o primeiro motivo para o ter em boa estima.
-Tem razão, disse-me ele sem levantar a voz. Stravinsky e o senhor são incompatíveis. Escolha então o músico que quiser e faça o seu filme. Encontraremos outra coisa para Stravinsky.
Aceitei, recebi um adiantamento sobre o meu salário e fui ter com Dalí a Figueras. Estávamos no Natal de 1929.'
Luis Buñuel, 1982
Poderá requisitar este título fundamental na coleção de livros do CIAC-UAlg na biblioteca do Cineclube de Faro
ou ler on-line disponibilizado por este Centro de Investigação em Artes e Comunicação, aqui.
Notas críticas
Film Festival: All Bunuel:1930 Shocker Better Than New Drama, Eugene Archer. NYTimes: Sept. 22, 1964
'THE New York Film Festival, persisting in its search for a sensation, dug into the vaults last night for "L'Age d'Or," a much-censored 34-year-old classic by Luis Buñuel.It was an all-Buñuel evening at Philharmonic Hall, with the outrageous old surrealistic comedy followed by his brand-new French version of "Diary of a Chambermaid." This double dose of old-guard moviemaking drew a sellout crowd to both shows at the 2,500-seat auditorium, but disappointment was in the air.Perhaps too much was expected from the celebrated Spanish director of "Viridiana" and "The Young and the Damned." Teaming him with France's finest actress, Jeanne Moreau, sounded like a good idea, since her erotic gifts would seem an ideal complement to Mr. Buñuel's well-known penchant for perverse themes. No one was quite prepared for the tepid result.As for "L'Age d'Or," this widely discussed scandal film had been preceded by such a formidable critical reputation that it could scarcely have lived up to expectations. This 1930 attack on the conventions of society, with particular emphasis on organized religion, was banned in most parts of the world. Its previous screenings abroad were mostly limited to private showings at film clubs and museums, but many critical histories accord it a high place.The film is still an eye-opener. Its intentions are entirely clear from an early scene. A ceremony commemorating the founding of the Eternal City of Rome is interrupted by a pair of uninhibited lovers writhing in the mud. When the scandalized spectators pull them apart, the frustrated male gives a watching dog a well-aimed kick.Mr. Buñuel and his co-scenarist, none other than Salvador Dali, have packed just about every-surrealist symbol they could think of into this rebellious epic. Their lovers are prevented by society from satisfying their natural instincts.Finally the hero, called to the telephone from a garden rendezvous, strides furiously to an upstairs window and throws out a donkey, a plow, a feather pillow and an archbishop. A knowledge of Freud is not necessary to get the point.Since the filmmakers are catholic in their protest, indiscriminately opposing all forms of social conventions rather than specific establishments, it is difficult to take offense. At this late date, the film's outstanding quality is not its defiance of traditional mores but its wit, which is savage, scabrous and frequently hilarious. It is no more shocking than Dada.If "L'Age d'Or" proved less than a sensation at Lincoln Center, it was in part because of its method of presentation. A French-language print was shown without subtitles, and a translator's voice barraged the auditorium over a loudspeaker, drowning the original sound track. It was not the happiest solution to the dubbing problem.Sadly, the intervening decades seem to have weakened Mr. Buñuel's powers. His new adaptation of Octave Mirbeau's "Diary of a Chambermaid" suffers in comparison with the strange but memorable version Jean Renoir did with Paulette Goddard in 1946.He has used the story of a worldly wise domestic in a weird country household as a background for his comment on the changing French social structure before World War I. The provincial chateau is rife with old-fashioned quirks and perversions—a shoe fetishist, a servant-chasing master, a reluctant wife, a sinister overseer who rapes and murders a little girl.A subdued Miss Moreau gives an able performance as the maid with idiosyncrasies of her own, but she is not aided by unsympathetic direction. Sir. Buñuel has photographed her harshly and scorned any background music that might accentuate her dramatic effects. It seems an ungrateful way to treat a brilliant star whose subtly modulated acting gives meaning to an unresolved and ambiguous script (...)'
Spain, Catholicism, surrealism, anarchism, Carlos Fuentes.The New York Times: March 11, 1973
'(...) “L'Age d'Or” opened in 1930 at the Studio 28 in Paris to an uproar worthy of Hugo's “Hernani” or Stravinsky's “Rite of Spring.” The camelots du roi and other Catholic and Fascist gangs threw brimming inkpots at the screen and slashed the paintings by Dali, Ernst and Tan guy exhibited in the lobby. The right‐wing press egged the gangs on and howled against Buñuel. Finally, Police Commissioner Chiape had the film banned. But one, of its first spectators, Henry Miller, had now written that “L'Age d'Or” was a unique and incomparable film, the only one he had seen that revealed the true possibilities of the cinema. (...)'
A Idade de Ouro: Buñuel sem Dalí, Alain Bergala
'Buñuel diz ter renunciado ao cinema depois de Um Cão Andaluz, recusando, como bom surrealista que era, todos os compromissos do cinema comercial. Contudo, ele anotou uma série de ideias-piadas que contou a Dalí, que se declarou disponível para escrever com ele o seu segundo filme. Em Paris, Buñuel é apresentado aos Noailles que lhe vão propor a realização, com total liberdade, de um filme de vinte minutos do qual eles seriam os mecenas. Buñuel aceita e reencontra-se com Dalí em Cadaqués, durante o Natal de 1929. Dalí tinha acabado de conhecer Gala, que era nessa altura a companheira de Paul Éluard. Buñuel detesta-a desde o primeiro encontro, e sente que ela vai interferir na sua amizade com Dalí. Num impulso irresistível, ele tenta sufocá-la sob o olhar de Dalí. Por causa desta quezília, que nunca chega a ser realmente reparada, o papel de Dalí no segundo filme de Buñuel reduz-se a algumas imagens, entre as quais a da estátua e a do homem com uma grande pedra lisa na cabeça. Jeanne Rucar, a recente noiva de Buñuel, trata das contas do filme.
Buñuel descreve assim o elenco d’A Idade de Ouro: “Para mim, tratava-se sobretudo de um filme sobre o amor louco, um impulso irresistível que atrai alguém para o outro, sejam quais forem as circunstâncias, um homem e uma mulher que nunca se podem unir. A articulação do desejo e do contexto social está no coração de A Idade de Ouro. Buñuel diverte-se com este retrato colectivo da burguesia “que não quer ver nem saber” aquilo que não lhes diz respeito. O carro de bois que atravessa a grande sala, para eles, é literalmente invisível. Quando o guarda mata o filho com um tiro por fazer cair o tabaco do seu cigarro, os convivas da festa dão uma olhadela discreta à cena, mas regressam imediatamente às suas mundanidades como se fosse um incidente sem importância. No entanto, alguns momentos depois, indignam-se com uma bofetada dada a uma dama de companhia. Cada um vê o escândalo através do filtro da sua perspectiva social. Mas o desejo, esse, pode despontar igualmente numa jovem rapariga da burguesia, num velho maestro, ou num “humanitário” em missão oficial. Manifesta-se, neste filme, sob a forma de uma magnetização irresistível entre dois seres, que cancela qualquer submissão às leis do espaço e do tempo.
Os dois personagens atraídos um pelo outro estão em comunicação física directa, e igualmente afastados um do outro. Os gestos compulsivos (a fricção masturbatória repetitiva) transmitem-se à distância, por contágio, e acabam por, literalmente, possuir as personagens. O tempo não existe para o subconsciente. O desejo não tem idade: o velho maestro é tomado por um desejo imperativo que o faz abandonar o seu papel social e enfrentar o escândalo.
Mais misteriosa, no filme, é a longa cena inicial, quase lânguida, de outro grupo social do filme, a dos bandidos (ou dos revoltados) exaustos, entre os quais podemos identificar Max Ernst e Pierre Prévert. Esta cena foi filmada numa paisagem austera que foi a de muitas pinturas de Dalí, no Cabo de Creus, no norte de Figueras. Tudo acontece como se o desejo da acção colectiva tivesse sido impedido por um imenso cansaço e apagado antes de completar a sua finalidade. Mas um desejo individual ressurge imediatamente no casal que se abraça no chão, e perturba escandalosamente a cerimónia oficial. Aos olhos de Buñuel, que é tudo menos moralista, o desejo é antissocial e pode surgir seja onde for, quando for, e em qualquer pessoa. As situações como as da festa mundana (que reencontramos em Ele), em que o interdito pela sociedade é o que mais está presente, sempre foram as mais propícias, nos filmes de Buñuel, ao despontar do desejo escandaloso2.
Duas cenas de A Idade de Ouro contribuíram bastante para o escândalo que seguiu a sua primeira projecção. A primeira é aquela onde Lya Lys chupa voluptuosamente o dedo do pé de uma estátua. A segunda é a cena final onde Buñuel, que acabou de descobrir com deslumbramento o Marquês de Sade, cujas obras estão discretamente presentes, filma a saída do castelo de Selliny, onde se desenrola Os 120 dias de Sodoma. O duque de Blangis como Cristo, esgotado, é representado por um actor “especializado” no papel de Cristo.
A Idade de Ouro é um dos primeiros filmes falados filmados em França. Buñuel acredita ter inventado uma voz interior na cena em que o casal está sentado no jardim, sendo os diálogos aquilo que transmite a intimidade de uma cama: “Aproxima a tua cabeça, aqui a almofada está mais fresca. Tens sono? Que felicidade ter assassinado os nossos filhos…” A voz off é a de Paul Éluard.
Para a estreia do filme, os Noailles convidam Paris inteira para a sessão no cinema Panthéon. Os seus convidados e amigos, ofendidos, saem da projecção sem os cumprimentar. Eles são excluídos do Jockey-Club e ameaçados de excomunhão por terem produzido este filme. Este chega a estrear-se comercialmente, mas é proibido pelo presidente Chiappe em nome da manutenção da ordem pública, depois de críticas virulentas na imprensa, e de ataques da extrema direita na sala do Studio 28. O filme A Idade de Ouro permanece proibido durante cinquenta anos, tanto em França como nos Estados Unidos.'
in Luis Buñuel – Collection Grands Cinéastes, Edição Cahiers du Cinéma e Le Monde
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