O Fim do Mundo
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
ciclo Na Corda Bamba
15 OUT (5ªf) | IPDJ | 21H30
O FIM DO MUNDO, Basil da Cunha, Suíça/Portugal, 2019, 107’, M/16
ficha técnica, sinopse e trailer: aqui
nota do realizador
Com O Fim do Mundo, eu queria contar as últimas horas do bairro da Reboleira através dos olhos da geração que eu vi crescer e tomar conta das ruas nos últimos anos. A geração de Spira (18), Chandi (17), Giovani (19) e Iara (16). Geração dos primogénitos daquele bairro de lata, sendo também a das redes sociais. Geração de um bairro inteiro destinado a desaparecer por acção de retroescavadoras e de decisões políticas. Cada um destes jovens protagonistas mantém uma relação única com essa futura “cidade desaparecida”. Há Iara, uma jovem mãe adolescente que só aspira estar noutro sítio, sem fazer a mínima ideia de como lá chegar; há Chandi, o filhinho da mamã, brincalhão, mandrião e eterno devoto; há Giovani, o jovem traficante selvagem que tem um objectivo claro: apoderar-se da “cidade”! E por último, mas igualmente importante, há Spira, que regressa ao bairro depois de vários anos num internato, uma verdadeira prisão para menores. Ele personifica o destino de uma geração de filhos de imigrantes que Portugal não soube integrar na sua narrativa nacional. Spira absorve a violência de um passado que desaparece, de um presente que parece congelado e de um futuro que o recusa. Ele responde com revolta. Ao observar o seu corpo, que o torna estrangeiro no seu país, navegando pelas guerras de gangues, pela adolescência e pelos seus amores roubados, e o fim iminente do bairro, pretendi tecer o retrato de uma juventude ferida, enquanto tentava fazer também um fresco social. Tecer como que para ganhar tempo, tecer para enganar uma morte anunciada.
notas da crítica
Uma carta de amor à Reboleira - Público
Basil da Cunha conta uma história de crime, amor, delinquência e amizade de uma forma tão cúmplice e detalhada (...) um filme particularmente bem conseguido. - Visão
Um tributo a quem foi negado uma voz - Cineuropa
Um conto social amoral, um filme marcante - Libération
Um filme impressionante - Screendaily
entrevista ao realizador
Chama-se O Fim do Mundo, mas traz uma réstia de esperança. Vencedor do Prémio de Melhor Longa-metragem Portuguesa no IndieLisboa, depois de ter passado por Locarno, o filme de Basil da Cunha, lusodescendente que vive entre Portugal e a Suíça, não pede licença para entrar no pequeno mundo da Reboleira - o realizador já é da casa. Aqui, a ficção confunde-se muitas vezes com a realidade, porque, para Basil, o caos da vida está acima de tudo. E, no entanto, a câmara que segue os passos de Spira (Michel David Pires Spencer), um jovem de regresso ao bairro após oito anos numa casa de correção, tem a doçura do cinema que procura na rugosidade das pessoas a matéria de uma elegia. O fim deste mundo é o perigo do "fim" da Reboleira. Mas antes do naufrágio, Basil diz-nos que quer filmar tudo e todos, observando as zonas de conflito à sua volta, tal como o protagonista.
A Reboleira tem sido o microcosmos do seu cinema, não apenas desde a longa-metragem anterior, Até Ver a Luz [2013], mas já nas curtas que fez para trás. Porque é que escolheu este bairro como "tema" contínuo da filmografia que tem vindo a construir?
Não escolhi. Foi a Reboleira que me escolheu. Caí lá de paraquedas, há mais ou menos 12 anos. Estava na Suíça, vim para Portugal, tinha de arranjar um sítio para ficar com a minha namorada, e como as rendas eram mais baixas ali, decidimos pela Reboleira. Acontece que, como na Suíça também já filmava as pessoas que me rodeavam, amigos e família, um meio social que queria pôr na tela por sentir que estavam mal representados (imigrantes portugueses, albaneses, turcos, etc.), quando cheguei cá o processo foi o mesmo. À partida, não vinha com a intenção de filmar, mas depois de ser recebido de braços abertos, e percebendo rapidamente o olhar que a sociedade portuguesa tinha sobre essa comunidade, estando eu a conhecê-la melhor a cada dia - porque o bairro é como uma aldeia -, comecei a fazer parte daquilo. E o que via à minha volta era incrível! Só no dia em que cheguei vi mais coisas a acontecer do que em três meses na Suíça! Desde um tipo a entrar com um cavalo num café para pedir uma míni, um anão a carregar um armário com três vezes o tamanho dele... Tenho de ser sincero: mesmo como realizador, não posso meter num filme tudo o que vejo porque ninguém acreditava. É um misto de Kusturica e Fellini. Tem poesia e magia. E eu vejo cinema em cada esquina, em cada rosto; cada pessoa tem mil e uma histórias, que sei ser impossível contá-las todas.
Como é que se criou o vínculo de trabalho a longo prazo com essas pessoas?
Os nossos filmes sempre foram muito artesanais. Éramos quatro ou cinco e inventámos a nossa própria maneira de fazer as coisas, com muita liberdade e improviso. Mas o vínculo criou-se porque, de filme para filme, o leque de atores foi-se alargando, e os que vêm dos primeiros filmes estão a enquadrar os mais jovens. Ou seja, acabo por ter uma trupe ao estilo do Cassavetes, porque eles são cúmplices e também realizadores dentro do filme. Neste momento tenho todas as gerações, e, além de sermos muito unidos, são atores fantásticos! O rumo que uma cena pode tomar durante a rodagem é inacreditável... Veja-se, isto não é um plano de carreira, simplesmente seria absurdo prescindir destas histórias. Acho que ainda vou fazer muitos filmes com eles.
Nas conversas captadas no filme, a certa altura fala-se da ideia de paraíso e dos sonhos de quem ali vive. Este é um tipo de diálogo muito característico dos seus filmes...
Eu acho que a Reboleira é um paraíso. E se formos a ver bem, é um mundo. Conheço poucas pessoas que querem sair dali. Ainda há pouco o Alexandre da Costa [um dos atores de O Fim do Mundo] contava que nasceu lá, a casa dele foi destruída, mora agora no Casal da Mira, e por ele queria morrer na Reboleira... É uma liberdade e um à-vontade que não se tem em mais nenhum sítio. Escreves "Café" numa parede e aquilo é um café, escreves "Barbeiro" e é um salão de barbeiro. Um Sunset ali dá 10 a zero ao Bairro Alto... A forma como o espaço é construído, a entreajuda na comunidade, o facto de todos saberem a história uns dos outros... cada pessoa é aquilo que os outros sabem que ela é.
Numa das suas curtas-metragens, Nuvem Negra [2014], há uma discussão, até bastante filosófica, sobre o fim do mundo. É daí que vem o título deste filme?
Ainda ninguém me tinha perguntado isso! É mesmo daí que nasce o título, e foi o ponto de partida para o filme.
Um filme que parece assentar na lógica do "deixá-los ser". Como se, para lá da narrativa ficcional, a câmara se detivesse simplesmente sobre uma dinâmica espontânea. Até que ponto o improviso entra aqui?
Para já, não há ensaios e ninguém lê o guião. Para poder filmar o caos - porque é isso que as minhas rodagens são -, faço questão de que a vida tenha mais importância do que o cinema. Se alguém está a jogar às cartas numa cena, continuam a jogar depois de eu parar de filmar... No fundo, nós perdemos sempre para a realidade. Mas para filmar o sal da vida também é preciso ser um bocadinho germânico na disciplina. É como o jazz. Parecendo que não, por detrás da improvisação do jazz há um trabalho imenso, basta pensar no Sun Ra.
E neste caso, o crioulo também tem esse "sal da vida".
Exato, o crioulo permite dizer numa só frase três ou quatro coisas. A poesia está na própria língua.
Por comparação com o Até Ver a Luz, este filme tem uma estrutura mais desenhada, quase a conter o simbolismo do que é nascer e morrer na Reboleira...
Precisamente. Eu queria meter tanta coisa e precisava de um fio condutor... Achei que começar com o simbolismo de um batizado e acabar com um funeral era algo que segurava as pontas do filme.
E depois há um certo momento em que filma os rostos dos atores, um a um, a olhar diretamente para câmara, deixando no espectador a sensação de uma despedida em relação àquelas pessoas...
No momento em que filmei os rostos, foi exatamente isso que senti e que pensei. Porque, antes da pandemia, todas as semanas havia casas a desaparecer no bairro. Ia três semanas à Suíça e quando chegava já não dava com a porta onde uma velhota vendia frango... Isso assustou-me. A urgência de filmar veio daí, e o plano dos rostos é talvez o plano mais importante para mim, porque pensei "é a última vez que posso pôr todas estas pessoas lado a lado", e cada cara conta uma história, cada cara é a possibilidade de outro filme isolado. Ou seja, se eu não conseguir fazer mais nenhum filme ali, ao menos há um plano de homenagem. O que tem um duplo sentido, porque, para os espectadores que se envolveram pela ficção, e entretanto se esqueceram de que aquelas são pessoas reais, isto serve também para os relembrar. Como quem diz: "Tu olhaste para eles, eles agora olham para ti." Mas no fim de contas importa lembrar que, afinal, este não vai ser o último filme. A pandemia deu-nos mais um tempo e vamos voltar à carga.
Durante a rodagem, as tais histórias individuais vão-se insinuando?
Sim, e inclusive ficam registadas. Houve muita coisa que filmei e ficou de fora. Por exemplo, as fofoqueiras que se vê a certa altura, filmei imensas cenas geniais com elas! A minha intenção agora é fazer um filme-coral - que até é um tipo de cinema pouco explorado - porque se tornou necessário mediante todo o material que tenho, das várias gerações. Além disso, as mulheres são os verdadeiros heróis deste bairro. Muitas delas vão pôr os filhos à creche às seis da manhã, depois têm dois ou três trabalhos e, ao chegar a casa à noite, ainda vão fazer a comida para os miúdos... Sinto falta de explorar essa dimensão da vida ali.
Inês N. Lourenço, dn