Fevereiro
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in Programação
5ªF | 28 OUT | IPDJ | 21H30
FEVEREIRO, Kamen Kalev, Bulgária/França, 2020, 125', M/12
sinopse, ficha técnica e trailer:aqui
notas críticas
Um filme-poema búlgaro que surpreende pela sua beleza e que nos convida a admirar as coisas simples.
Manuel Halpern, Visão
Pensei na energia telúrica do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, desde logo na referência modelar de Trás-os-Montes (1976). Claro que o "paralelismo" está longe de esgotar as singularidades do filme de Kalev, mas talvez nos ajude a penetrar na sua contida magia. Há mesmo em Fevereiro uma solidão criativa em tudo e por tudo cúmplice da deambulação do seu Petar - como se o cinema fosse essa arte, discreta e nobre, de lidar com a crueldade do tempo que passa.
João Lopes, DN
outras leituras
Natureza, matéria e espírito
nota de intenções
O personagem de Petar e os lugares descritos no guião estão intimamente ligados às memórias que tenho do meu avô e da aldeia em que a minha mãe cresceu: Razdel. A aldeia está localizada na parte oeste de Strandja, muito perto da fronteira com a Turquia. Esta proximidade também se reflecte no dialeto local, cheio de palavras turcas.
Até hoje, a aldeia segue o seu próprio ritmo, longe das rápidas mutações da área urbana. Esta aldeia e o seu isolamento, muito característico de regiões de fronteira, cria uma poderosa sensação de se viver fora do tempo. Os eventos dos três capítulos são inspirados em momentos reais da vida do meu avô: a remota cabana do pastor, as colinas cheias de túmulos antigos e dos seus saqueadores, o quartel da base naval em Bourgas, e a decisão de Petar de se juntar à sua irmã Gelyaza para passar o resto da sua velhice com ela.
A necessidade de contar esta história em três partes surgiu com a ideia de fazer um filme que lidasse com a predeterminação da vida. Uma criança torna-se adulta, a casa torna-se vazia, os gestos repetem-se. A terra, as ovelhas, os pássaros, a água. Tudo o que conecta o homem com a natureza. A vida é determinada pelos antepassados e pelos hábitos com os quais crescemos.
No entanto, o meu objectivo não é reduzir o filme a um ensaio antropológico sobre a vida de um homem. Quero fazer um filme que vá além do realismo quotidiano, no qual a poesia e o misticismo reflictam as forças invisíveis que nos movem para a frente na vida, e cujo significado não pode ser compreendido. Um “filme de contemplação” sobre a energia incondicional do ser humano rumo à morte.
Na primeira parte, a criança Petar encontra uma estátua fascinante e misteriosa num curral abandonado. Apesar da proibição do seu pai, Petar volta para o curral, enfeitiçado com a sua descoberta, que se sobrepõe à monotonia da sua vida.
Na segunda parte, o marinheiro Petar deixa a sua aldeia para cumprir serviço militar numa ilha remota. Descobre poesia e conhece pessoas muito diferentes das das suas origens. Mas Petar já não é uma criança e parece determinado: ele sabe que pessoa era e sabe que pessoa se tornará.
Na última parte, o velho Petar junta-se à sua irmã, que está gravemente doente. No caminho, ele anda por uma floresta no meio de uma tempestade de neve. Entre a vida e a morte, o seu corpo e mente parecem flutuar num estado quase extático. O velho homem não parece ter medo, pelo contrário. Ele e as forças da natureza tornam-se num só ser.
Quero observar um personagem cuja principal característica é ser reservado. Apesar desta personalidade introvertida, o espectador terá a sensação de seguir uma personagem complexa e poderá conectar-se com o seu universo peculiar, a sua sensibilidade e a sua energia.
Os personagens genuínos que conheço, a linguagem que ouvi e os lugares que vi, constituem a substância fundamental deste filme. Eles fazem parte da minha cultura e criam histórias que só podem ser contadas neste país específico por meio dessa língua. A realidade cinematográfica adquire tal força e move-se profundamente graças a esta ligação autêntica entre o autor e o contexto.
Desconfio de filmes maliciosamente emocionais com tópicos definidos de maneira demasiado certinha, nos quais os autores dão respostas padronizadas que o espectador pode aceitar ou rejeitar. A minha sensibilidade está direccionada a filmes que dão ao espectador a possibilidade de transcender a imagem e o som para encontrar as suas próprias respostas para além das questões que o filme aborda. Penso em Apichatpong Weerasethakul, Carlos Reygadas, Béla Tarr, Lucrecia Martel e Miguel Gomes.
O ritmo do filme é particularmente importante. Dias redundantes e longas sequências descrevem a vida monótona em que cada acção parece já ter sido escrita. Apesar dessa sensação de infinitude, a vida passa num flash e de repente o herói encontra-se muito perto da morte. No final, a sua vida normal, repleta de milhares de repetições, assume novas proporções. O meu filme foi feito para ter uma estética naturalista.
Os contrastes são suaves e bonitos.
A luz é natural. Apesar de uma imagem realista, a reação geral ao filme será de estranheza, devido ao ritmo específico, a escassez de diálogos, as personagens e os acontecimentos invulgares.
Queria ter poucos movimentos de câmara. São as personagens que movem e alteram o valor e a intensidade dos planos. A composição é clássica e o ponto de vista é imparcial e paciente.
Kamen Kalev