A Zona de Interese
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 1 FEV | IPDJ | 21H30
A ZONA DE INTERESSE
Jonathan Glazer, US/UK/PL, 2023, 106’, M/12
Sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
notas críticas
Um exame brilhante da cumplicidade humana. The Playlist
Uma obra-prima implacável. BBC ★★★★★
Devastador e vital... Arrojado e brilhante. O filme de Jonathan Glazer dá-nos o tipo de arte mais vital que nos pode ser possível produzir, enquanto espécie. The Telegraph ★★★★★
Atinge-nos com uma urgência impiedosa.The Times ★★★★★
É um toque de despertar. The Hollywood Reporter
Não ignorem. Slash Film
Trata-se de querermos o melhor para os nossos filhos, cumprirmos as regras e trabalharmos arduamente, sentirmos que merecemos o melhor da vida, entrelaçado com o inominável. Time
entrevista com o realizador
Podes falar-nos do teu ponto de partida para A ZONA DE INTERESSE?
Eu não faço muitos filmes. Mas quando faço um, tendo a dedicar-me muito, muito, ao projecto até que ele esteja concluído. Nunca há qualquer sobreposição. Assim, quando terminei o meu último filme (DEBAIXO DA PELE), apareceu este tema. Era algo que eu sempre soube que viria a abordar ao longo da minha vida. Mas não tinha pensado na perspectiva que iria desenvolver até ler o livro [de Martin Amis]. Na verdade, tudo começou quando li um excerto do mesmo. Houve algo no ponto de vista descrito que me tocou e liguei para o [produtor] Jim Wilson. Encorajei-o a ler o romance e fiz o mesmo.
Impressionou-me a perspectiva de Paul Doll, o comandante fictício do campo e uma força motriz do mesmo – uma personagem muito barroca. Martin Amis assumira em parte uma perspectiva extraordinária, perspectiva essa tão fascinante e perigosa. O Sr. Amis baseara claramente Paul Doll em Rudolf Höss, o verdadeiro comandante de Auschwitz, e assim, a partir do romance, comecei a ler e pesquisar sobre Höss e Hedwig, a sua mulher, e o modo como viviam em Auschwitz, num canto do terreno. Tinham uma casa com um grande jardim, separado do campo por um muro comum. De certa forma, fixei-me no muro. A compartimentalização das suas vidas e o horror que se vivia ali mesmo ao lado… Esse foi o ponto de partida e o filme cresceu a partir daí.
A compartimentalização é vista como um tema importante no filme e também está no cerne da forma como fizeste ofilme, com várias câmaras a filmar simultaneamente em diferentes salas…
É uma maneira muito estranha de fazer um filme, mas foi a única maneira que arranjei para o fazer. Eu queria entender a distância: quão distante queria estar das personagens e quão distante queria que elas estivessem de mim. Achei que tinha de haver uma espécie de distanciamento crítico. Não foi porque receasse tocá-las, mas queria vê-las na perspectiva forense. Um olhar quase antropológico. Assim, não me imaginei a discutir a luz de fundo ou pormenores desse género com o meu director de fotografia, ou a forma como a luz não incidia de forma favorável sobre o cabelo da actriz; ou que lentes seriam adequadas; ou se precisávamos de filmar dissimuladamente; isto ou aquilo.
Não quis exaltar, algo que o cinema pode fazer e uma linguagem a que este facilmente recorre. Temos de nos esforçar muito para não o fazer. Achei que queria apenas observar. E, estabelecido isso, a questão do argumento passou a interessar-me também menos. Eu não queria uma história que tivesse como pano de fundo o Holocausto. Há tantos livros sobre o tema, e em cada um deles basta abrir uma página ao calhas e encontra-se um filme. Não era isso que eu queria fazer, portanto, fui reflectindo cada vez mais sobre o que queria e só percebi o que ia filmar quando percebi como o ia filmar.
O filme é muito contido em termos daquilo que se vê; tenta evocar as coisas através da sua ausência, ou então simplesmente através do som, como uma espécie de ambiente de genocídio…
O que eu quis foi filmar o contraste que existe entre alguém que serve um café na sua cozinha e alguém a ser assassinado do outro lado do muro. A coexistência desses dois extremos. Foi essa atmosfera que eu procurei e que quis que o público vivesse. Portanto, pensei: aquelas pessoas viviam naquela casa e cometeram aqueles crimes durante quatro anos. Perguntei-me: quando vamos lá? Quando vamos visitá-las?
Deve ter sido um processo muito rigoroso.
Pesquisei durante dois anos, antes de começar a escrever. Tivemos investigadores a trabalhar no Museu Auschwitz--Birkenau Museum e no Memorial. A indicação que tinham era a de ver os "livros negros" todos, milhares e milhares de testemunhos de vítimas e de sobreviventes. Eu procurava o que quer que fosse sobre Rudolf Höss, a mulher ou os filhos. E passados alguns meses, eles começaram a dar-nos material. Às vezes, pormenores, às vezes, coisas que tinham sido publicadas. Depoimentos do jardineiro e de alguns dos criados. Num deles, o jardineiro, que sobreviveu à guerra, relata que ouviu Hedwig barafustar com Rudolf sobre a transferência deste. Ela estava furiosa e disse-lhe que só sairia de Auschwitz à força. E isso fez-me pensar que queria que aquele fosse o meu ponto de partida. O momento da dita transferência e a ameaça que aquela mulher sentiu de poder vir a perder tudo aquilo por que tanto trabalhara. O filme assenta nesse momento.
Temos um filme que é um drama familiar, sobre um homem e a sua mulher. Eles são muito felizes. Têm cinco filhos e vivem numa casa linda. Ela dedica-se muito à arquitectura do seu jardim, gosta de estar rodeada pela natureza. Ele tem um trabalho importante e é muito bom no que faz. Têm uma parceria bem-sucedida. A dado momento, ele recebe a notícia de que a empresa o quer transferir para outra cidade. Ela fica em estado de choque, não quer ir com ele. Há um solavanco no casamento. Ele vai de qualquer maneira. Eles fazem o melhor que podem. Não vão desistir de tudo. Depois, há um final feliz: ele consegue voltar e continuar e fazer o que adora, junto da família. A única coisa que me esqueci de dizer é que ele é o comandante nazi de Auschwitz. É daí que vem a ideia do ambiente de genocídio e também de que a história é sobre nós: sobre revermo-nos nisto, ou tentarmos rever-nos. Aquilo que mais nos assusta, suponho, é que poderíamos ser eles. Eles eram seres humanos.
Tu observas todos os pormenores domésticos no filme, de modo que, embora estejamos sempre cientes de quando e onde estamos, há também observações específicas (e universais) sobre classe, sobre casamento, sobre paternidade, sobre a relação das pessoas com o trabalho – tudo no contexto mais amplo desta negação voluntária e colectiva. Há nisso uma certa loucura.
Referes-te a todo aquele empreendimento ou às pessoas que o executaram?
A uniformidade de tudo é enlouquecedora; o olhar do filme é muito preciso, muito equilibrado, muito imparcial.
É verdade. Mas eu também precisava de um equilíbrio, ou seja, eu também precisava de um pouco de luz. Lembro-me de pensar – na primeira de muitas viagens à Polónia – que não conseguiria fazer o filme se não houvesse nada senão escuridão. Entretanto, conheci uma mulher, uma senhora de noventa anos que lá estivera e que fora partisan. Na época, ela tinha doze anos e fazia parte da resistência polaca. As crianças da resistência tinham as suas tarefas. Ela contou-me que saía de casa e alimentava secretamente alguns dos prisioneiros. Não mo disse com orgulho. Acontecera simplesmente e ela fizera-o: a coisa mais natural para ela naquela idade, naquelas circunstâncias.
Isso fez-me pensar nos meus filhos e naquilo que eles vêem da janela: um ambiente normal, saudável e feliz. Ela olhava pela janela e via pessoas a ser levadas, espancadas e executadas. Ela vivia a uns dois quilómetros do campo. Não consegui esquecer aquela história e senti-a como algo muito sagrado, não no sentido religioso. Com efeito, ela estava no extremo oposto do espectro do Höss e era a luz. Senti que conseguiria fazer o filme. Representei-a com a imagem térmica; é ela quem encontra a música e a toca; é ela quem apanha maçãs e pêras e as deixa para os presos. É uma parte extremamente importante do filme e não é propriamente uma personagem. Considerei-a mais como uma energia.
Há no filme muitas escolhas formais muito estranhas, mas controladas: mencionaste a imagem térmica, mas há também o prólogo e a coda, que são simplesmente um ecrã negro, se não contarmos com as palavras do título no início – palavras essas que desaparecem lentamente na escuridão – e até o corte entre ficção e documentário, que é muito inesperado…
Tudo isso teve que ver com um olhar do século XXI. Eu não quis sentir que estava a fazer um filme sobre aquele outro período para depois o colocar num museu, à laia de: "Foi assim naquela altura". Falamos, sem dúvida, do pior período da história humana, mas depois "vamos pôr isto de lado, não somos nós, estamos a salvo disso, foi há oitenta anos. Já não tem nada que ver connosco". Mas é evidente que tem, e, preocupantemente, poderá sempre voltar a ter. Quis continuar a olhar sempre para aquilo com um olhar moderno.
O aspecto novo e fresco de tudo também foi pensado. A casa foi construída uns anos antes de a família Höss morar nela. Tem de parecer nova. Auschwitz também tem de parecer novo. As árvores que agora têm quinze metros de altura eram árvores jovens, na época. Parecia tudo acabado de fazer e as câmaras captaram-no. É tudo nítido e definido e, de certa forma, parece não ter autor – ser incorpóreo. A fotografia térmica surgiu da mesma ideia, a de não ter qualquer iluminação. Não há uma única luz artificial no filme. É tudo luz natural, ou então é uma luz da sala que alguém acendeu. Do mesmo modo, se decidi não iluminar uma sala de estar, também não iria iluminar os campos. Em 1943, no meio dos campos, não se via nada à noite, então a ferramenta moderna é uma câmara térmica. É tudo uma questão de consistência e o compromisso de não fetichizar nada. Eliminar qualquer alegoria.
Podes falar-nos sobre a relação entre liberdade e controlo na configuração das múltiplas câmaras? Muitas cenas parecem ter-se simplesmente desenrolado, mais do que serem produto de uma microgestão – lembra DEBAIXO DA PELE, onde a par de partes semi-improvisadas há planos principais extremamente compostos.
Tratou-se de criar uma arena. Realizar este filme foi um trabalho estranho, porque eu teria de ser extremamente exigente e disciplinado sobre aquilo que a câmara iria ver, mas deixando espaço nos enquadramentos para uma total improvisação. Algumas cenas são improvisadas, outras seguem o guião à risca. Em ambos os casos, eu sabia que poderíamos sempre filmar outra vez, mas não podia simplesmente entrar e deslocar uma cadeira. Assim, descartei a continuidade. Descartei a iluminação. Descartei todos os aspectos chatos das filmagens, porque sabia que não podia entrar ali como faria normalmente. Às vezes, era muito frustrante para mim. De certa forma, tive de abrir mão da microgestão. Estava ali sentado a olhar para dez monitores!
Há uma cena no filme em que Hedwig está a tomar café com as amigas e Rudolf está no escritório com os executivos da empresa de engenharia Topf and Sons que lhe estão a vender um novo projecto de crematório e os oficiais das SS chegam para um brinde de aniversário e as criadas andam para cá e para lá e está tudo a acontecer e a ser filmado em simultâneo numa língua que não falo. Houve loucura naquilo, mas, ao mesmo tempo, eu sabia que haveria uma uniformidade de tom em todas aquelas cenas que não poderíamos ter conseguido de outro modo.
A arena é uma metáfora muito boa: há muita tensão no espaço e muito tempo gasto a cartografar os seus limites para os espectadores. A cena em que Rudolf começa a fechar as portas e a apagar as luzes tem um elemento estruturalista: é muito doméstica, mas também muito sinistra e ritualística, e os cortes são todos tão precisos. É como um filme dentro de um filme. Mas eu sinto que ele é um homem muito assustado e essa cena é um exemplo desse medo. Faz-nos pensar naquilo que é importante para ele, as pessoas de quem gostamos. Com que pessoas nos preocupamos e as que não nos preocupam.
A estratégia revela-se útil, mais tarde, no filme, quando percebemos que pelo menos uma das portas abre para os dois lados e que, de certa forma, ele não mora do outro lado do muro de Auschwitz. Ele consegue entrar lá sem sair de casa, o que é assustador e prático ao mesmo tempo. Na verdade, ele nunca sai do trabalho e nunca sai de casa.
Aqueles túneis existiam mesmo: a casa de banho a que ele vai fica na cave da casa dele. Foi uma cena muito estranha e sinistrae revela também o aspecto grotesco de toda aquela organização. Todos os seus aspectos.
Dadas todas as oportunidades potenciais de olhar para o lado de lá do muro ou para lá dele, muro esse literal e figurativamente falando, podes falar-nos sobre a escolha de uma absoluta contenção em termos de qualquer mostra de violência?
É uma escolha. Vem dessas conversas sobre a ética da representação do Holocausto. Li muita coisa sobre isso. Como podemos mostrar o Holocausto? Ou a pergunta talvez seja: podemos mostrá-lo? Devemos mostrar o todo ou podemos mostrar apenas uma parte? Há dissertações brilhantes sobre o tema. Tenho essas conversas com a minha própria família, e tenho a certeza de que as há também em tua casa. Eu tinha de tomar uma posição e sabia que não queria fazer reconstituições de violência. Não queria ver figurantes de pijama às riscas a ser espancados. Uma sova a fingir, por mais bem executada que fosse... e mais tarde, encontra-se o figurante na tenda do buffet, a comer uma maçã e um pudim. Debati-me muito com isso, logo no início, e depois fui ficando cada vez mais exigente em relação a isso. Houve um rascunhoinicial do guião em que havia algumas cenas violentas, mas elas aconteciam apenas em sonhos. Mas pensei sobre terror e género e todas as coisas horríveis que o filme poderia tornar-se se eu renunciasse ao meu compromisso. Não quis que isso acontecesse.
Um bom exemplo disso seria um filme como SALÓ OU 120 DIAS DE SODOMA. Eu não poderia fazer um filme assim. Não tenho estômago para tal. Então ficámos do outro lado do muro. Eu sabia que o som – e a nossa interpretação do som – ambientaria as imagens que todos vimos, que estudámos na escola. Não quis mostrar eu as imagens. Acho que essas imagens estão em cada fotograma do filme, em cada pixel. Mas é tudo.
Houve alguma coisa que quase "rebentou o muro" do filme?
Não vou dizer que não. É verdade que escrevi coisas que "rebentaram o muro" e que depois não filmei. Lembra-te que estávamos no solo de Auschwitz. Os actores alemães estavam a protagonizar pessoas que podiam ter sido seus avós. Havia um ambiente muito estranho. Não sei se isso poderia ter sido conseguido num estúdio de cinema ou mesmo noutro ponto do país. Lembro-me de ter dito às pessoas com quem estava que o lugar é que era importante. O lugar é que era importante. Quanto mais penso nisso, mais acho que foi a forma do lugar, a compartimentalização e o efeito que o local teve nas pessoas.
A certa altura, Hedwig diz à mãe: "Os judeus estão do outro lado do muro", o que é verdade, mas não deixa de ter também subjacente uma incrível espécie de negação e repressão…
Hannah Arendt falou sobre a leviandade do genocídio, o que parece polido ou insuficiente, mas ela quis dizê-lo literalmente.
Sem pensar. Um dia, a Sandra Hüller veio ter comigo. Foi antes de filmarmos a cena à beira do rio onde os Höss falam sobre o seu futuro. Ela perguntou-me se a ideia seria mostrar uma Hedwig emocionada. Eu respondi: "Claro que está emocionada, é um ser humano. A questão não é se ela está emocionada, a questão é aquilo que a emociona. O que é que a emociona?
Então, se vais chorar nessa cena, chora apenas por ti."
Há outra cena em que ela e Rudolf estão na cama – ou em camas separadas, o que corresponde totalmente ao plano da casa, duas camas, àquela distância uma da outra – e eles estão a conversar e é simplesmente horrível: ela quer voltar a um spa, ele está a pensar na sua transferência. Ela está ali deitada a rir, e nós estamos todos a assistir no monitor e o riso é contagiante, percebes? Eu pensei, estamos do lado deles? Sentimos empatia por eles? Que estamos a fazer?
Eles estão a seguir os seus sonhos: construir uma casa, cultivar a terra, cumprir a ideologia nacionalista. O amanhã pertence-lhes.
Passo a passo. Eles promulgaram o que eram. Inspiraram-se no sonho americano. Para os alemães, "ir para o Leste" equivalia ao "ir para o Oeste". O mesmo impulso de expansão.
É quem somos, enquanto seres humanos.
Há um momento muito crucial no final do filme em que Rudolf vai para o trabalho e vomita. É como se o seu corpo tivesse dúvidas sobre o que ele está a fazer. E então, de repente, estamos no presente, em Auschwitz. Saímos do passado.
Não precisas que eu explique, mas tem piada: eu não vejo isso como uma passagem do passado para o presente. Vejo-o como a presença do futuro. É muito estranho, mas depois de visitar olugar pela primeira vez, escrevi uma frase no guião sobre entrelaçar "o aqui e agora" com "o lá e então". Foi uma nota para mim mesmo. Estava à procura disso, mesmo sem saber o que era. Isso emerge aí. Depois, ele recompõe-se e segue em frente. Põe o chapéu, desce as escadas e continua o seu trabalho. Naquele momento, vendo o futuro, ele é uma testemunha da devastação que causou? Estará a imaginá-la? Seja como for, prossegue. Seja como for, prosseguimos. Nunca mais seja para quem for ou nunca mais para nós? É aquilo que toleramos.
A cena é forte porque a sua náusea é involuntária: ele não sente nada por aquilo, mas o vómito surge, não obstante. É irreprimível.
Uma filósofa brilhante, Gillian Rose, que escreveu muito sobre o Holocausto, imaginou um filme que poderia fazer-nos sentir "inseguros", mostrando como estamos emocional e politicamente mais próximos da cultura do perpetrador do que gostaríamos de pensar que estamos. Um filme que poderia deixar-nos com aquilo que ela chamou "olhos secos de uma dor profunda". Olhos secos versus lágrimas sentimentais. Achei aquilo uma ideia muito forte. E foi isso que pretendi fazer. Não é um filme frio, mas tem de ser um filme forense.
Um olho seco não pestaneja.
Pois não, está demasiado ocupado a olhar. É difícil olhar.É difícil não estremecer.